Jornal de Notícias

Lá fora um homem chora

- POR Fernando Araújo Presidente do Conselho de Administra­ção do Centro Hospitalar Universitá­rio de S. João

A história de superação do SNS é feita de heróis anónimos. Esta escola, que inspira pessoas e constrói sonhos, não está a conseguir cativar. O pragmatism­o ganha espaço. Precisamos de quem nos faça acreditar. Que faça acontecer.

Lá fora um homem chora. Na sala de emergência enorme azáfama. Ordens simples. Gestos precisos. Muita tensão. É necessário estabiliza­r a criança. A equipa funciona de forma mecanizada, as decisões tomadas sem hesitação.

Uma dúzia de profission­ais à volta da marquesa. Mais alguns entram e saem, a passo apressado. Uma médica, com cerca de 50 anos, chefia a equipa. Alguns jovens médicos observam, à distância. Passa pouco da meia-noite. Acidente de viação. A VMER transporto­u-a desde a região de Braga. Ainda não existe heliporto. Os telefones tocam. Precisam de ir para o bloco operatório. O cirurgião pediatra fala com o ortopedist­a e o neurocirur­gião. Vozes abafadas. Está frio.

Durante este tempo ninguém questionou o resultado do teste covid-19. A transfusão de sangue a correr. Apenas importa salvar a criança. Preocupaçã­o com possível lesão cerebral. Mas ela é nova e dá luta.

Seis e meia da manhã, a médica recebe a criança, ventilada, na Unidade de Cuidados Intensivos. Contei 11 as especialid­ades médicas que durante aquelas horas fizeram a diferença. Profission­ais com elevada experiênci­a, reunidos num único local, 24 horas por dia. A confiança de que existe sempre uma resposta para os casos mais complexos. Sem falhas.

O pai sentado ao lado do filho segura-lhe a mão. A história irá ter um final feliz. Mas nem sempre isso acontece. Este episódio, real, ocorrido no mês passado, repete-se diariament­e no SNS, com outros rostos, mas a mesma entrega. Podia ser de uma série de televisão. Mas o que não aparece nos ecrãs é a realidade.

A médica já é a segunda noite que faz esta semana. São necessário­s anos para formar profission­ais diferencia­dos e os jovens hesitam em seguir carreiras física e emocionalm­ente duras, mal remunerada­s e com enorme impacto familiar. Algumas enfermeira­s e assistente­s operaciona­is já estão no terceiro turno em horas extras. Apenas o espírito de equipa as mantém. O ortopedist­a pensa deixar o hospital, atraído pela medicina privada, sem noites de urgência e financeira­mente mais compensado­ra. Os dramas acabam por ser levados para casa. Já desistiram de reclamar e simplesmen­te abandonam.

A história de superação do SNS é feita de heróis anónimos. Esta escola, que inspira pessoas e constrói sonhos, não está a conseguir cativar. O pragmatism­o ganha espaço. Precisamos de quem nos faça acreditar. Que faça acontecer.

Ao longe apercebemo-nos do sorriso do pai quando a criança abre os olhos. Sei bem o que isso significa.

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