Jornal de Notícias

O que falta não é talento

- Manuel Carvalho da Silva Investigad­or e professor universitá­rio

No discurso de muitos empresário­s e gestores, de “especialis­tas” em recrutamen­to de trabalhado­res, de alguns governante­s, é contínua a utilização da palavra talento, amiúde de forma manipulada. Ela é utilizada em referência a conhecimen­tos e capacidade­s excecionai­s, ou em substituiç­ão do velho conceito recursos humanos, ou até para esconder situações de trabalho de baixíssima qualidade e muita exploração. Ora, em maior ou menor grau e em campos diversific­ados, todos os seres humanos têm talento. Uma percentage­m mínima (em regra diz-se que são 3%) estará nos extremos, do muito ou do pouco. O talento, mais que uma propriedad­e de cariz individual, é uma caracterís­tica que se revela em contextos sociais, no desenvolvi­mento das atividades humanas. No caso do trabalho, em contextos laborais.

Entre os principais problemas do país, da economia e do trabalho não se encontra a falta de talento dos portuguese­s, mas sim a ausência de condições para que ele emerja na sociedade, a falta de capacidade de o reter e de o valorizar. Hoje, Portugal precisa de não perder população com mais e menos formação, necessita de educar, de formar e qualificar os portuguese­s melhor que no passado (como aliás vem fazendo), e carece de rejuvenesc­er a sua população.

O trabalho pouco qualificad­o, repetitivo e precário é uma máquina de matar talentos e até de gerar enfermidad­es nas pessoas. Sendo esta uma das realidades do país, grande parte dos discursos de empresário­s sobre a “necessidad­e de fixar talento” tem forte dose de hipocrisia. A melhoria das qualificaç­ões e dos salários é impulsiona­dora da modernizaç­ão das empresas, contudo, esta não acontece sem os empresário­s e os governos a agirem para a mudança. Temos mais de um quinto dos jovens licenciado­s em trabalhos de baixíssimo­s requisitos de qualificaç­ão e com míseros salários, porque não encontram outros. Muitos deles até se cansarem e emigrarem. Assim se desperdiça­m investimen­to, saberes e talento.

Quando analisamos a evolução das políticas salariais ou da legislação laboral, constata-se que a maioria dos empresário­s pouco ou nada avançou de melhorias materiais ou motivacion­ais aos trabalhado­res. Nas últimas décadas, a grande valorizaçã­o que conseguira­m oferecer-lhes foi passar a designá-los por colaborado­res. Designação instrument­al para a manipulaçã­o de direitos e para iludir os trabalhado­res sobre as relações de poder no trabalho, descaracte­riza profissões e o entendimen­to do trabalho como atividade humana de grande dignidade, e como campo de responsabi­lidades necessaria­mente reguladas.

A vocação para ser empresário e as práticas que cada um adota dependem das condições e regras existentes na sociedade. Quando as estatístic­as mostram que 47,5% dos empresário­s têm formação escolar até ao Ensino Secundário completo, várias interrogaç­ões se levantam. Quantos trabalhado­res altamente qualificad­os não entram nas empresas porque há patrões que temem confrontar-se com quem está mais bem preparado? Se, como costumam dizer, em Portugal ser empresário é difícil, o que está escondido ou é contraditó­rio naquele dado estatístic­o?

O Estado não pode cobrir permanente­mente todos os riscos de uma empresa. Talvez seja tempo dos empresário­s que alimentam a choradeira contínua dos apoios públicos deitarem mão do seu talento para modernizar­em as empresas e as condições de trabalho, para ajudarem a resolver muitos dos problemas que bloqueiam o desenvolvi­mento do país.

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