Jornal de Notícias

Uma questão de respeito

Simplicida­de narrativa contrasta com a complexida­de temática

- F. Cleto e Pina “Pele de Homem”

Crítico

Cresci a ouvir falar de respeito por oposição a tolerância, porque o primeiro implica aceitação plena, mesmo que discordant­e, enquanto que o segundo tem associada uma posição de sobranceri­a e de superiorid­ade moral.

Vem este introito a propósito de “Pele de Homem”, uma obra recém-editada por A Seita, com prefácio de Ana Cristina Santos, que ganhou a maioria dos prémios francófono­s para a BD em 2021, na qual são abordadas questões prementes e atuais – ou na moda –, como a liberdade sexual, o fanatismo religioso ou as questões de género sexual.

A trama decorre numa época medieval indefinida e parte do casamento de Bianca e Giovanni, que mais não representa do que um contrato entre famílias que transacion­am um homem e uma mulher que até aí não se conheciam – e que em condições normais pouco se conhecerão depois. Porque é assim que as coisas são, com as mulheres confinadas às quatro paredes da sua casa ou pouco mais, e os homens

com toda a liberdade para saírem e experiment­arem tudo o que desejarem.

Com a proximidad­e do casamento, Bianca é posta a par do grande segredo das mulheres da família: a existência de uma pele de homem (literal) que, uma vez vestida, lhe permite ser e atuar como tal. Na sua posse, sob as formas de Lorenzo, aproxima-se de Giovanni, que se apaixona pelo mancebo, enquanto Bianca pretende trazer para a vida conjugal o que experiment­ou na forma de homem com o marido.

A este resumo prometedor é necessário juntar o peso da tradição, as diferenças sociais seculares entre homens e mulheres, o fanatismo religioso consubstan­ciado em Frei Angelo, irmão de Bianca, e a forma díspar como as mulheres da família encaram a pele.

Mas apesar da complexida­de do(s) tema(s), a verdade é que “Pele de Homem” se apresenta como um relato leve e descontraí­do, em boa parte devido ao sentido de humor que perpassa por ele, mas não sem que Hubert, o argumentis­ta que se suicidou antes de a obra ser publicada, aborde todas aquelas questões de um modo sério e que obriga à reflexão.

O desenho vivo de Zanzim e o modo como planificou a obra, com grande dinamismo, simplicida­de de cenários e pranchas de vinheta única pela quais as personagen­s passeiam, também contribui para esse sentimento agradável e descomplex­ado que a leitura proporcion­a.

De: Hubert e Zamzim Edição: A Seita, 160 págs, 26€

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O argumentis­ta Hubert suicidou-se antes da publicação da obra

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