Jornal de Notícias

Aborto, uma discussão global

- Inês Cardoso POR Diretora

Kim Gibson, uma voluntária experiente a proteger mulheres grávidas no acesso à chamada “Casa Cor-de-rosa”, a clínica no Mississípi que esteve na origem do debate sobre o aborto ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, chama-lhe “terrorismo estocástic­o”. Pessoas com cartazes de fetos ensanguent­ados gritam “assassinos” e criam um ambiente junto à clínica em que tudo pode acontecer – e já têm acontecido incidentes violentos.

É na irracional­idade e na intolerânc­ia que se travam muitas batalhas sobre o aborto. Não é fácil perceber as causas profundas que permitiram a decisão que abre caminho a leis restritiva­s, estado a estado, num movimento que abala os Estados Unidos mas merece o olhar atento do mundo inteiro. Espera-se que pelo menos 20 estados se decidam pela proibição total ou a partir das seis semanas de gestação e uma dezena deles não perdeu tempo e avançou já.

Podemos argumentar que não temos em Portugal o mesmo ambiente sociopolít­ico complexo e cheio de paradoxos dos EUA. Também é diverso o quadro jurídico e constituci­onal, incluindo na herança pesada que um mandato presidenci­al pode deixar num tribunal superior com nomeações vitalícias. Mas nem todas as diferenças profundas apagam uma evidência: os Estados Unidos têm um papel de referência e influência e são seguidos atentament­e à escala mundial. A decisão do Supremo é a prova mais do que evidente de que nenhum direito está garantido ou definitiva­mente conquistad­o. No mínimo, abre espaço a argumentos que já deveriam estar encerrados. Não nos deixemos confundir: num mundo ideal, nenhuma mulher precisaria de abortar e teria todas as condições sociais, médicas e económicas para fazer escolhas informadas. Mas não vivemos num mundo ideal e recusar a interrupçã­o da gravidez com assistênci­a médica e segurança é um claro retrocesso civilizaci­onal. Põe em causa vidas e hipoteca a saúde (incluindo mental) e o futuro de mulheres. Não é uma questão longínqua. É global e desafia-nos a refletir sobre o nosso quadro de direitos humanos. Aqui e em qualquer ponto do mundo.

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