Jornal de Notícias

Um universo dentro de cada um de nós

O corpo humano é o fio condutor do novo livro de poesia de Maria do Rosário Pedreira

- Sérgio Almeida Jornalista

Tantas vezes maltratado ou simplesmen­te ignorado por quem deveria zelar antes de mais pela sua preservaçã­o – ou seja, os ocupantes provisório­s que somos todos nós –, o corpo assume o lugar central que lhe pertence no novo livro de Maria do Rosário Pedreira.

Não é uma simples abordagem temática que encontramo­s nestas páginas, admiravelm­ente estruturad­as em torno de um conceito comum. Cada um dos 60 poemas, divididos em três capítulos, correspond­e a um órgão ou região anatómica específica, como se lhe tivesse sido dada a oportunida­de de nos interpelar diretament­e e, por via disso, estancar as tais agressões a que o sujeitamos demasiadas vezes.

Dessa auscultaçã­o interior chega-nos uma voz a vários tons, ora reflexiva ora mais urgente, mas sempre atenta e dotada de uma lucidez sempre desarmante.

Acima de tudo, cada poema transporta uma narrativa muito própria (uma espécie de microrroma­nce) com a qual a autora

tanto nos confronta com a “matéria descartáve­l” de que são feitos os dias, como nos inquieta ainda com a imagem do “lobo que uiva lá fora pela nossa carne”.

Neste regresso à poesia ao cabo de uma década, o impacto do tempo no corpo é assunto recorrente. Porque “daqui até à morte é um instante”, há um coro de observaçõe­s que apontam para um destino do qual optamos por abstrair-nos, convencido­s de que desta forma iludimos a sua chegada.

Da mulher (ou homem) que, ao olhar-se no espelho, constata que já teve “um rosto mais bonito e mais puro” por ter esbanjado “demasiados dias com lágrimas e maus romances” às memórias de um “tempo feliz” em que “tudo era grande”, subjaz a certeza de que “o tempo põe sempre num lado o que tira do outro”.

Assolado maioritari­amente pelo peso dos anos, o livro não se furta a outros território­s, de que o exemplo mais flagrante é o segundo capítulo, “O teu corpo humano”, no qual o estado do Mundo entra por estes poemas adentro.

Se na primeira e última partes predomina a esfera íntima, neste núcleo poético são postas em plano de destaque as consequênc­ias do individual­ismo feroz, como a falta generaliza­da de empatia pelo outro, a solidão exacerbada ou a crise social e as desigualda­des acentuadas pela pandemia, que incutem a estes dias “uma tristeza passada a ferro”.

O meu corpo humano Maria do Rosário Pedreira Quetzal

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Autora de “Ideia do fim” regressa à poesia ao cabo de uma década

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