Jornal de Notícias

Dramas de Agosto

- Rui Cardoso Martins POR jornalista O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA

A ideia de que chega o Verão e, com ele, o disparate noticioso, a leveza pateta da “silly season”, é coisa séria, uma vez que acontece. Mas o Mundo não pára de ranger os seus gonzos terríveis de Agosto e, há dias, no tribunal, ao ouvir uma mulher dizer, a dois metros do tio

– O que sei é que o meu tio bateu na minha mãe. Porquê, não sei... no tom de quem discute o que é que vamos jantar, lembrei-me de outro caso a que assisti há quase vinte anos. A impressão, agora, é de medo e de reconhecim­ento de padrões. Em 2005, começava eu: “Esta impressão de que o mundo em Agosto acelerou, desde o primeiro ao último segundo, para velocidade­s proibidas, vai parar ou temos um despiste em Setembro?” A seguir, as desgraças: “Seca, floresta em chamas, casas a arder, foguetes, petróleo, aviões de férias caídos por mistério, homens-bomba, mulheres queimadas, crianças esmagadas, afogadas, furacões, inundações, mais petróleo, demolições, saques, completem a lista de cabeça”. Actualizam­os esta lista em Agosto de 2022 e vemos tantas coisas iguais ou piores, continua a invasão assassina da

Ucrânia (em 2005 era o desastre iraquiano), há as guerras de fogo e da fome, petróleos e gás, os ódios em espiral e revivo esta conclusão: “A espiral do Mundo engole a minúscula história que trago. Nalguns sentidos, é inexistent­e: uma mulher perdoou a um homem em Lisboa, só isto, e nem há certeza de o perdão ter valido a pena. Mas a história acabava bem (apesar de verdadeira).

Ana e o cunhado viviam no mesmo prédio. Ana fez queixa na polícia, crimes de ameaça e injúria. A juíza lembrou que era um caso de família:

– Se se pudesse resolver a situação de modo consensual, seria benéfico para todos.

A primeira reacção de Ana, perante a proposta, foi torcer os dedos das mãos, contando-os uns nos outros.

– As pessoas não vivem numa selva e têm que ter um comportame­nto diferente..., disse Ana, finalmente.

Era uma mulher com um peito alto, cavado e belo, a cara, infelizmen­te, cheia de sulcos, a erosão das lágrimas.

– Se ele se dispusesse a pedir desculpas, e se quiser pagar uma indemnizaç­ão de 20 contos [era ainda o tempo dos contos, 100 euros!], que eu entregaria aos Alcoólicos Anónimos...

Era só o que Ana pedia. Não queria o dinheiro para si. O cunhado era um bêbedo, além de minúsculo. Escondera-se nos óculos, de grossas lentes amarelas. O bigode parecia uma minhoca de peluche, como aqueles brinquedos mágicos dos miúdos, que se movem com fio de nylon. Ana concluiu, quase a chorar.

– Só peço que não se volte a repetir nunca mais. Porque eu vivo sozinha com o meu filho e vivo sob ameaça a todo o instante!...

O cunhado de Ana virou-se para trás: – Sabes perfeitame­nte que... ahh... perfeitame­nte... peço-te desculpa. Tocou-lhe no ombro e terminou, desajeitad­o.

Estava feito o acordo. Lá fora, o advogado falou:

– É preciso é que haja paz... e os filhos, os dois, dão-se tão bem!

E de facto, viam-se no átrio dois miúdos, os primos, olhando o que se passava sem saberem o que fazer. Não sei o que tinha o cunhado contra Ana, mas espero que a paz sobreviva no prédio. E que a mulher que viu o seu tio bater na mãe, há dias, já saiba porquê. E que tenham conhecido a paz e um dia, talvez, o mesmo aconteça ao Mundo.

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