A natureza do ódio
Foi na vila literária de Óbidos, durante o Fólio, que conheci Salman Rushdie. O escritor “maldito” era afinal um homem simples e divertido.
Em outubro de 2016 estivemos juntos apenas três dias, mas foram tão intensos que ficámos amigos e, desde então, regularmente, fomos trocando mensagens. O nosso assunto era sempre o mesmo: a liberdade e os perigos que ela enfrenta.
Também lhe conheci Josep Anton, o pseudónimo onde Salman se escondeu da fatwa que o ayatollah Khomeini lhe proclamou em 1989, quando era o líder supremo do Irão, e que mais tarde resultou no livro homónimo “Josep Anton, uma memória”, publicado em 2012, quando o próprio Rushdie acreditava que sua sentença de morte já estivesse extinta.
Soube isso da própria boca do escritor quando, em 2016, após muita insistência dos Serviços Secretos Portugueses em acompanhar de perto a sua visita a Portugal e “prover a necessária segurança”, Salman me confidenciou quase em tom de brincadeira – de forma tão convincente que eu acreditei. “Não precisamos dessa gente – diga-lhes – esse assunto (a sentença de morte) foi resolvido entre o Irão e o Governo inglês há 10 anos atrás, agora é só show-off”.
E assim foi. Na visita que fizemos à Pilar del Río na Fundação Saramago, em Lisboa, ele “obrigou-me” a abandonar o carro no Jardim de S. Pedro de Alcântara e mentir aos polícias que nos perseguiam para todo o lado num indiscreto carro vermelho, falando que estávamos noutro lugar.
Mas, 33 anos depois da sentença de morte que o líder religioso lhe proferiu, mesmo sem alguma vez ter lido “Os versículos satânicos”; e quando já nada o fazia prever, um fanático anacrónico, sem qualquer sentido prático, lembrou ao Mundo a verdadeira natureza do ódio: uma vez começado, nunca mais termina.