O humor sem freio de Hugo van der Ding
Uma compilação alargada das principais personagens criadas pelo cartoonista
O que torna o humor de Hugo van der Ding tão singular e, em última análise, desafiante, é a ausência de filtros, ou seja, a noção clara de que, entre a ideia que lhe dá origem e a sua execução, há uma espécie de fluxo imediato quase contínuo que contribui decisivamente para que o leitor crie forte empatia com as inimitáveis tiras cómicas que cria.
Essa liberdade atravessa “O lixo na minha cabeça”, título que resume de forma exemplar o processo humorístico do autor da rubrica radiofónica “Vamos todos morrer”. Sem pudor ou rebuço, o cartoonista transporta para os seus desenhos e respetivas falas as principais taras, obsessões e manias que gravitam na sua mente, obedecendo a impulsos que em muito favorecem a hilaridade de certos quadros sociológicos por si apresentados.
Longe de serem um entrave inultrapassável, as limitações técnicas enquanto ilustrador até o ajudam na criação da imagem do “homem que não sabe desenhar, mas por acaso até se safa a mandar umas bocas”, como é apresentado no livro.
Apesar de haver evidentes traços comuns no género de humor apresentado – o desbragamento, o gosto pelo absurdo ou a recusa de uma abordagem mais conjuntural e efémera –, as mais de 350 páginas revelam um curioso desdobramento, de acordo com as características das personagens que protagonizam estas micro-histórias.
Na era do politicamente correto e do cerceamento de várias formas de liberdade individual, cada um destes peculiares seres representa à sua maneira, para o melhor e para o pior, sobretudo para este, uma recusa acérrima da uniformização. O ponto alto desta galeria de fraquezas será Juliana Saavedra, uma psiquiatra que se entretém a desfazer o já dilacerado ego dos seus pacientes. À medida que ouve os seus incontáveis queixumes, aproveita para acrescentar comentários mordazes que fragilizam ainda mais esse já débil estado de espírito. Quando o torturado paciente afirma sentir-se “completamente morto por dentro”, Saavedra desfere um golpe certeiro: “Mas, tirando isso, está tudo bem, não está?”.
Outra das personagens mais notáveis é Celeste da Encarnação. À primeira vista, uma idosa ternurenta, ela é, na verdade, uma hedonista em último grau, viciada em ácidos e demais estupefacientes, que vive sempre à beira do abismo, procurando a cada instante novas fontes de prazer.
“O lixo na minha cabeça”
Hugo van der Ding
Oficina do Livro