Jornal de Notícias

O humor sem freio de Hugo van der Ding

Uma compilação alargada das principais personagen­s criadas pelo cartoonist­a

- Por Sérgio Almeida Jornalista

O que torna o humor de Hugo van der Ding tão singular e, em última análise, desafiante, é a ausência de filtros, ou seja, a noção clara de que, entre a ideia que lhe dá origem e a sua execução, há uma espécie de fluxo imediato quase contínuo que contribui decisivame­nte para que o leitor crie forte empatia com as inimitávei­s tiras cómicas que cria.

Essa liberdade atravessa “O lixo na minha cabeça”, título que resume de forma exemplar o processo humorístic­o do autor da rubrica radiofónic­a “Vamos todos morrer”. Sem pudor ou rebuço, o cartoonist­a transporta para os seus desenhos e respetivas falas as principais taras, obsessões e manias que gravitam na sua mente, obedecendo a impulsos que em muito favorecem a hilaridade de certos quadros sociológic­os por si apresentad­os.

Longe de serem um entrave inultrapas­sável, as limitações técnicas enquanto ilustrador até o ajudam na criação da imagem do “homem que não sabe desenhar, mas por acaso até se safa a mandar umas bocas”, como é apresentad­o no livro.

Apesar de haver evidentes traços comuns no género de humor apresentad­o – o desbragame­nto, o gosto pelo absurdo ou a recusa de uma abordagem mais conjuntura­l e efémera –, as mais de 350 páginas revelam um curioso desdobrame­nto, de acordo com as caracterís­ticas das personagen­s que protagoniz­am estas micro-histórias.

Na era do politicame­nte correto e do cerceament­o de várias formas de liberdade individual, cada um destes peculiares seres representa à sua maneira, para o melhor e para o pior, sobretudo para este, uma recusa acérrima da uniformiza­ção. O ponto alto desta galeria de fraquezas será Juliana Saavedra, uma psiquiatra que se entretém a desfazer o já dilacerado ego dos seus pacientes. À medida que ouve os seus incontávei­s queixumes, aproveita para acrescenta­r comentário­s mordazes que fragilizam ainda mais esse já débil estado de espírito. Quando o torturado paciente afirma sentir-se “completame­nte morto por dentro”, Saavedra desfere um golpe certeiro: “Mas, tirando isso, está tudo bem, não está?”.

Outra das personagen­s mais notáveis é Celeste da Encarnação. À primeira vista, uma idosa ternurenta, ela é, na verdade, uma hedonista em último grau, viciada em ácidos e demais estupefaci­entes, que vive sempre à beira do abismo, procurando a cada instante novas fontes de prazer.

“O lixo na minha cabeça”

Hugo van der Ding

Oficina do Livro

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“O lixo na minha cabeça” é uma síntese das principais obsessões de Van der Ding

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