Jornal de Notícias

“Acredito que Amadeo ia acabar a fazer cinema”

Vicente Alves do Ó Realizador ficciona vida do pintor modernista Amadeo Souza Cardoso, que morreu em 1918. Filme estreia hoje

- POR João Antunes cultura@jn.pt

“Amadeo” é visão ficcionada por Vicente Alves do Ó de três momentos do pintor modernista Amadeo de Souza Cardoso: a vida com Lucie em Manhufe, durante o confinamen­to da gripe espanhola; a mudança para Paris e a morte pneumónica aos 30 anos. Rafael Morais encarna Amadeo. Este é o último filme em que vemos Rogério Samora e Eunice Muñoz. O realizador confessou-se ao JN.

Florbela, Al Berto, Amadeo: é o seu destino fazer filmes biográfico­s?

Foi o meu destino durante tanto tempo, porque conseguir financiar filmes neste país leva muito tempo. Foram 12 anos entre o primeiro e o último. Mas esta trilogia é muito importante para mim. Foram 12 anos muito vividos – estou com muitos cabelos brancos. Agora vou descansar um bocadinho e fazer outras coisas.

Porque escolheu estes três?

São três pessoas que admiro imenso. Foi uma questão de identifica­ção, quis vingar a imagem que elas têm, ou no caso do Amadeo o seu desapareci­mento. Em Portugal, há quem o conheça, mas não está inscrito na história universal da arte – não vale a pena inventar que está, porque não está. O cinema também serve para vingar, redimir do esquecimen­to.

Se não tivesse morrido aos 30 anos, até onde poderia ter ido Amadeo?

Acredito piamente que Amadeo ia acabar a fazer cinema. Era um homem do movimento, da velocidade, da cor. Há uma entrevista onde explica tudo e fica-se com a sensação que gostava de pôr o mundo inteiro – velocidade, cor, luz, ritmo –, dentro de uma tela. E isso é o cinema. Estávamos em 1918 e se calhar, dez anos depois, estaria a fazer o primeiro filme.

De toda a vida e obra de Amadeo, como escolheu os três momentos?

Ele viveu 30 anos, mas não é uma Florbela. Não tem uma vida cheia de peripécias. As coisas boas que lhe acontecem são difíceis de filmar. Por exemplo, ele manda os quadros para a grande exposição de Nova Iorque, mas não vai lá. Escolhi os momentos em que ele se define como homem e artista. E pintei-os como três telas.

Tem algo em comum com ele?

Se temos algo em comum é a imprevisib­ilidade e a liberdade. Como realizador e argumentis­ta, gosto de explorar coisas. Já fiz comédias palermas, posso dar-me a esse luxo. Eu leio Proust, Kafka, Joyce, essa gente toda, e escrevo romances. Mas gosto de comédias palermas. Adoraria experiment­ar o policial, o terror, estou com a cabeça à nora porque quero fazer um musical. E hei de conseguir. Não posso permitir que ninguém decida por mim. Amadeo tinha isso.

Como trabalhou com a equipa artística para reproduzir os quadros?

É o meu filme mais trabalhoso. Tivemos de reproduzir as obras todas, a Gulbenkian não emprestava os quadros reais. Depois, foi preciso recriar o Passos Manuel, que já não existe, hoje é o Coliseu do Porto. E tivemos de cruzar tudo e mais alguma coisa com o que as historiado­ras diziam. Mas com a devida ressalva que é cinema, é a minha interpreta­ção. Sou eu.

O filme parece mais caro do que aquilo que deve ter custado…

As pessoas perguntam-me pelo orçamento, porque tem um ar caríssimo. Mas não tive dinheiro para fazer uma cena numa rua de Paris. Comporto-me no cinema como na minha vida: gosto de viver bem, mas tenho um orçamento para viver. E tenho de arranjar maneira de comprar um livro e ir jantar fora de vez em quando, sem rebentar com o orçamento. Com o cinema, é exatamente a mesma coisa.

Como escolheu o Rafael Morais?

O Rafael é um ator incrível. Gosto muito dele. Tinha várias opções, há várias possibilid­ades de olhar para o Amadeo. Podia ser um tipo mais instalado, mais dandy, mais vaidoso, mais monárquico, senhor do sinete. Ou podia ser um artista moderno, complexado, mais fechado sobre si mesmo. E aparece depois o Rafael, um homem enjaulado, é um bocadinho rock star. Há algo altivo nele, quase ligeiramen­te arrogante. Mas depois é capaz de se atirar para a lama.

Eunice Muñoz e Rogério Samora, entretanto, morreram…

É uma emoção grande porque queria filmar com eles de novo a seguir. Estava entusiasma­do, foi antes da pandemia. Nunca mais me hei de esquecer da Eunice a olhar para mim, a dizer que queria filmar mais. Mas, de repente, rebenta a covid e aconteceu o que aconteceu... Tenho muita pena de não os ter tido na estreia, pena de não terem chegado a ver o filme.

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