“O país sonha pouco. É preciso haver poesia para projetar o futuro”
Ciclo poético Quintas de Leitura celebra 23.o aniversário e anuncia pausa. Em setembro volta para a Feira do Livro
Ao cabo de 23 anos de um “lento e incendiário percurso”, as Quintas de Leitura vão fazer uma pausa. “Mudançar é preciso”, anunciava a sessão realizada ontem à noite (ler ao lado), na qual a palavra voltou a ser deflagrada com a intensidade de sempre, mas desta vez com uma carga simbólica mais acentuada.
“É necessário um refinamento constante do modelo para que o próprio público não se canse”, diz João Gesta, programador do ciclo poético desde 2002, que destaca a “coragem” de mudar quando o público continua a demonstrar “grande carinho” pelo projeto.
Quaisquer que sejam até os protagonistas: na sessão comemorativa de mais um aniversário, foram omitidos de forma deliberada os nomes dos participantes, sem que a adesão dos espectadores se tenha ressentido.
Se a procura popular se tem mantido em níveis estáveis através dos tempos, também o apoio autárquico não tem sofrido transformações, apesar de o Porto ter conhecido executivos camarários que lidaram de forma distinta com a pasta da Cultura.
João Gesta elogia em particular “o apoio extraordinário” de Rui Moreira, fiel seguidor de uma iniciativa que veio dessacralizar o ato poético. “Se ‘a poesia é para comer’, como escreveu Natália Correia, não houve subalimentados do sonho nestes 23 anos”, escreve o autarca num texto incluído na edição celebrativa do ciclo.
A prolongada ausência do ciclo, a maior desde a sua criação, não preocupa sobremaneira o programador. Nos meses em falta, aponta, a oferta cultural na cidade será particularmente vibrante, com os festejos do 25 de Abril, nos quais a poesia não foi esquecida, mas também o festival DDD – Dias Da Dança, o regresso do Fórum do Futuro ou o manancial de atividade joaninas.
ESPAÇO DE LIBERDADE
“De baterias recarregadas”, as Quintas já têm regresso anunciado para o início de setembro, durante a homenagem a Eugénio de Andrade, que vai ter lugar na Feira do Livro do Porto.
O conceito vai sofrer alguns ajustes, mas mantendo as premissas de sempre, como “a navegação ao sabor do nevoeiro”, a que aludia a mais recente sessão.
Até aqui da responsabilidade dos poetas convidados, o guião vai passar a ser assumido pelo programador. Outra das alterações previstas é o ênfase maior à “arte de dizer”. Apesar de, desde sempre, o ciclo ter dado palco a alguns dos grandes dizedores nacionais, essa aposta será ainda mais vincada a partir da próxima temporada, num equilíbrio entre os consagrados ou nomes já consolidados e novos valores.
Com um milhar de convidados nas suas 255 sessões e um total de 55 mil espectadores, as Quintas de Leitura vão, todavia, continuar a ser o que sempre foram, adverte Gesta. “Um espaço de ‘liberdade livre’ que alia a transversalidade de géneros e filosofias, estranha aos olhos de algumas ideologias, ao caráter intimista”, que a poesia exibe como poucos.
E o futuro? O programador e poeta, de 70 anos, delimita o mapa temporal até dezembro, trabalhando já afincadamente nos preparativos dessas quatro sessões. Para mais tarde, fica a avaliação do que se poderá seguir. “Tal como o resto do país, estou na expectativa do rumo político que o país vai seguir”, afiança, convencido como está de que “o país sonha pouco. É preciso haver poesia para projetar o futuro”.