Jornal de Notícias

We are the World

- POR Afonso Reis Cabral Escritor O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA

Ainda na crónica da semana passada escrevia sobre a catadupa de beleza que nos pode cair nas mãos, se deixarmos. Se abandonarm­os as consultas do dr. Scroll, um médico sádico que nos atende em consultas paliativas e momentânea­s que nada curam, nada trazem, nada ensinam.

Podia apelar agora mesmo ao fim do uso dos telemóveis nas escolas – o que me parece inevitável vir a acontecer – e apelar às vistas largas que as paisagens oferecem fora do ecrã.

Mas parou-me nas mãos um documentár­io cheio de beleza, outro depois da curta de animação de Don Hertzfeldt, da qual falei na última crónica, e felizmente também há vida boa no ecrã. Faltando as caminhadas de vários quilómetro­s, aconselho um serão para ver a música “We are the World”. Quanto a ouvi-la, já o fizemos todos alguma vez.

Faltava assistirmo­s ao documentár­io “The greatest night in pop”, do realizador Bao Nguyen, agora disponível na Netflix, que traça o caminho que fez uma ideia (combater a fome na Etiópia) até se tornar música. Todas as músicas são ideias, mesmo que essas ideias sejam apenas sensações, mas nem todas as ideias são música. Aqui temos uma e outra, se pensarmos que a canção “We are the World” nasceu de uma conjugação galáctica de boas vontades.

Desafiados por Harry Belafonte, Leonel Richie e Michael Jackson compuseram um clássico absoluto e evitaram uma absoluta catástrofe artística: a cisão que poderia ter acontecido ao juntar os quarenta e sete maiores músicos pop dos anos oitenta.

Além de ser quase impossível conjugar as agendas de sumidades como Bob Dylan, Stevie Wonder, Paul Simon, Tina Turner, Billy Joel, Diana Ross e Bruce Springstee­n (a lista é muito mais longa), também parecia impossível conciliar os egos, os estilos, os temperamen­tos.

O documentár­io narra a ocorrência de uma impossibil­idade, o que é já de si belo, não fossem também belos os milhões que a música arrecadou para fins humanitári­os e bela a própria canção, que utiliza com mestria os registos dos solistas e um coro improvavel­mente extraordin­ário de vozes extraordin­árias a solo. Às rédeas da música – escusava dizer – esteve Quincy Jones.

Bob Dylan destaca-se porque Bob Dylan não sabe o que faz ali. Nem a sua voz é para aquilo, nem o seu feitio se adequa ao espírito do momento – Dylan é um verdadeiro cantautor, custa-lhe ajustar-se à rigidez do que lhe é proposto.

Quando chega o seu solo, não consegue cantar. Vê-se-lhe na cara que está com vergonha. Quem o salva é Stevie Wonder, que canta o verso imitando a sua voz, o que resulta num solo de Bob Dylan imitando Stevie Wonder imitando Bob Dylan.

E há mais belezas para descobrir neste documentár­io e nesta música, prodígio de uma única noite de gravação.

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal