We are the World
Ainda na crónica da semana passada escrevia sobre a catadupa de beleza que nos pode cair nas mãos, se deixarmos. Se abandonarmos as consultas do dr. Scroll, um médico sádico que nos atende em consultas paliativas e momentâneas que nada curam, nada trazem, nada ensinam.
Podia apelar agora mesmo ao fim do uso dos telemóveis nas escolas – o que me parece inevitável vir a acontecer – e apelar às vistas largas que as paisagens oferecem fora do ecrã.
Mas parou-me nas mãos um documentário cheio de beleza, outro depois da curta de animação de Don Hertzfeldt, da qual falei na última crónica, e felizmente também há vida boa no ecrã. Faltando as caminhadas de vários quilómetros, aconselho um serão para ver a música “We are the World”. Quanto a ouvi-la, já o fizemos todos alguma vez.
Faltava assistirmos ao documentário “The greatest night in pop”, do realizador Bao Nguyen, agora disponível na Netflix, que traça o caminho que fez uma ideia (combater a fome na Etiópia) até se tornar música. Todas as músicas são ideias, mesmo que essas ideias sejam apenas sensações, mas nem todas as ideias são música. Aqui temos uma e outra, se pensarmos que a canção “We are the World” nasceu de uma conjugação galáctica de boas vontades.
Desafiados por Harry Belafonte, Leonel Richie e Michael Jackson compuseram um clássico absoluto e evitaram uma absoluta catástrofe artística: a cisão que poderia ter acontecido ao juntar os quarenta e sete maiores músicos pop dos anos oitenta.
Além de ser quase impossível conjugar as agendas de sumidades como Bob Dylan, Stevie Wonder, Paul Simon, Tina Turner, Billy Joel, Diana Ross e Bruce Springsteen (a lista é muito mais longa), também parecia impossível conciliar os egos, os estilos, os temperamentos.
O documentário narra a ocorrência de uma impossibilidade, o que é já de si belo, não fossem também belos os milhões que a música arrecadou para fins humanitários e bela a própria canção, que utiliza com mestria os registos dos solistas e um coro improvavelmente extraordinário de vozes extraordinárias a solo. Às rédeas da música – escusava dizer – esteve Quincy Jones.
Bob Dylan destaca-se porque Bob Dylan não sabe o que faz ali. Nem a sua voz é para aquilo, nem o seu feitio se adequa ao espírito do momento – Dylan é um verdadeiro cantautor, custa-lhe ajustar-se à rigidez do que lhe é proposto.
Quando chega o seu solo, não consegue cantar. Vê-se-lhe na cara que está com vergonha. Quem o salva é Stevie Wonder, que canta o verso imitando a sua voz, o que resulta num solo de Bob Dylan imitando Stevie Wonder imitando Bob Dylan.
E há mais belezas para descobrir neste documentário e nesta música, prodígio de uma única noite de gravação.