Viva a Liberdade!
Partilho duas vivências do antigo regime, sobretudo junto dos mais novos:
No tempo da ditadura, pela voz de Manuel Alegre, a Rádio Portugal Livre apelava de Argel à participação nas manifestações clandestinas do 1.o de Maio, a terem lugar, entre outros locais, na cidade do Porto, mais precisamente na Praça da Liberdade. Apelo que ouvíamos o mais baixo possível e, conforme recomendação que passava de boca em boca, com uma folha de prata em cima do aparelho de rádio, para evitar que a polícia política escutasse a transmissão sistematicamente perturbada com interferências intencionais. Às 15 horas desse dia, tão motivado quanto ingénuo, para lá fui sozinho, deparando-me com um conjunto de supostos manifestantes que se olhavam receosos, esperando um qualquer sinal. Sinal que à hora marcada irrompeu de uma das varandas próximas com o grito: “Viva a liberdade!”. Verificou-se de imediato que, se havia de facto manifestantes, havia também muitos agentes à paisana, os quais sacaram prontamente dos cassetetes para, com violência, agredirem todos quantos pudessem. Eu, como muitos, fugi até parar em lugar supostamente seguro.
Que crime? Reivindicar a liberdade...
Numa junta de freguesia: – Ó senhor doutor... doutor Zezinho, por favor, preciso de um papel de residência... Papel? Traga um de sua casa, que eu preciso de todos os que tenho aqui. Mas disseram-me para lhe pedir... Pedir é ao padre ali ao lado! Acha que ele me dá? Ó mulher, não me faça perder tempo, preencha este requerimento que é para um atestado, qual papel, qual quê! Mas eu não sei ler nem escrever e não sei se o que eu preciso é isso que está dizer... Ai não sabe? Então vá para casa e veja primeiro se percebe o que quer. Por favor, senhor doutor...
Esta troca de súplicas e de equívocos maldosos por parte do “doutor Zezinho” multiplicava-se sistematicamente, provocando a insegurança de quem dele precisava e ocupando muito do tempo deste funcionário. Funcionário este diplomado como “doutor” pelo salazarismo e, por isso, zeloso protagonista do poder que a burocracia lhe dava.
Que comportamento indevido? Manifestar ser vítima de um analfabetismo reinante...
Importa não ver o poder desumano das ditaduras como uma mais-valia relativamente aos desafios das fragilidades humanas das democracias!