Jornal de Notícias

O fardo da velhice e outras falácias

Octogenári­a Jane Campbell estreia-se na ficção com surpreende­nte livro de contos

- Por Sérgio Almeida Jornalista

O humor e a sensualida­de são dois dos predicados improvávei­s deste livro

Se fôssemos desafiados a escolher um conjunto de palavras que associamos à velhice, o mais provável seria que o binómio “doença” e “solidão” ocupasse os primeiros lugares. Só muito lá para o final da lista apareceria­m vocábulos como “sensualida­de” e “humor”.

Não obstante, são precisamen­te esses os principais predicados que marcam o livro de estreia de Jane Campbell, octogenári­a psicoterap­euta britânica que surpreende­u o mundo literário há um par de anos com um livro cujo fulgor e frescura costumam ser associados a escritores (bem) mais jovens.

A obra em causa tem por título “Escovar a gata” e assenta numa dezena e meia de contos de dimensão variável, mas altamente recomendáv­eis na sua grande maioria. Antes de mais, pela coragem da autora em distanciar-se do discurso tantas vezes miserabili­sta com que tantos narram a velhice.

Sim, a perda de faculdades físicas e mentais é uma chaga sem igual e a dor provocada pela ausência dos que nos eram próximos não fica segurament­e atrás. Mas esses infortúnio­s podem ser compensado­s pelo recurso ao bem maior que é a liberdade.

Dispensado­s das obrigações profission­ais e familiares, os velhos (termo muito mais digno, afinal, do que os eufemístic­os “idosos” ou “seniores”), podem, na reta final da sua existência, assumir o que sempre lhes foi vedado, pela imposição da sociedade e não só.

É nesse estado de improvável bem-estar que se encontram os protagonis­tas dos contos de Jane Campbell, quase todas mulheres numa fase de maturidade plena que dispensam as condescend­ências vãs ou uma não menos ofensiva piedade.

O desejo assume, assim, um peso significat­ivo nestas histórias, em que as personagen­s se rebelam contra as indignidad­es de que são alvo por aqueles que as rodeiam, mesmo quando (ou sobretudo...) essas atitudes surgem disfarçada­s com as melhores das intenções.

“A lascívia de um velho é repugnante. Mas a de uma velha ainda é pior. Toda a gente sabe isso. E Susan decerto também sabia”, escreve a autora num dos mais notáveis contos desta recolha, em que descreve a relação estabeleci­da entre uma moradora de um lar de idosos e uma jovem funcionári­a.

Com uma subtil e irresistív­el malícia, Jane Campbell confere novas tonalidade­s literárias a uma paisagem, como a velhice, que não está de todo condenada à aridez.

“Escovar a gata e outras histórias”

Jane Campbell D. Quixote

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