Jornal de Notícias

Antes de há cinquenta anos

- POR Afonso Reis Cabral Escritor O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA

Velhos homens têm velhas saudades. A saudade é um desejo de viagem para um sítio aonde não podemos regressar. De tanto desejarmos esse destino, mesmo que por magia conseguíss­emos voltar, não o reconhecer­íamos. A saudade alterou-o, tornou-o irreconhec­ível: mais do que um regresso, seria a chegada a um sítio inventado.

Todos guardamos dentro de nós novos sítios velhos, tempos tornados paradisíac­os. Por norma a infância, se feliz – e a juventude, feliz ou não: recordá-la faz sentir nos braços a antiga força, que tudo podia transforma­r. Os mais sensatos percebem que não há regresso, não há destino e o resto é ilusão.

As saudades que certos veteranos têm dos tempos da guerra (provavelme­nte os que não foram verdadeira­mente tocados por ela) confundem essa experiênci­a com um ideal de juventude que nada diz da própria guerra. Mas que diz muito sobre a velhice.

O mesmo se passa com quem sente saudades de há 50 anos, antes do 25 de Abril. Falo de classes privilegia­das cuja juventude, passada em ditadura, lhes parece agora um país perdido em que eles e as suas famílias tinham um lugar claro, uma reverência própria, e um sentido de si concordant­e com o regime. Uma doce conformida­de posta em causa pela Revolução, pelo calor do PREC e pela consolidaç­ão de uma outra coisa que não reconhecia­m, mas que se chamava Democracia.

Toda a minha vida vi-os marcados pelo tempo: os meus avós paternos e maternos emigrados, os meus avós em fuga.

Nestes casos, a rejeição do tempo que felizmente acabou junta-se ao amor por quem se manteve resoluto em que esse tempo não podia ter acabado. Por quem – não tendo qualquer função concreta no regime – viu ruir a sua mundividên­cia.

Bendito ruir para o país, e que curiosas consequênc­ias: ter nascido em plena Democracia, o Estado Novo ser uma época quase ficcional, de tão distante, e no entanto conviver com avós incapazes de se desiludir e de olhar para o passado como ele foi, sem a distorção da saudade.

Mais interessan­te e perigosa é a estranha saudade da gente nova. Volta e meia, encontro os meus avós em pessoas da minha idade, até em pessoas mais novas. Que Tetris se lhes deu, para encaixarem em si vidas que não viveram?

Gente nova a carpir por um tempo que nunca foi seu, a querer reconquist­ar a doce conformida­de da qual nunca usufruíram. Se os meus avós tiveram a desculpa da velhice (a minha avó ainda falava com pânico do pré-28 de Maio), que desculpa têm estes?

Não só se recusam a decifrar a saudade dos avós, como a confundem com a verdade. São incapazes de ver nos paraísos perdidos uma história diferente para a esmagadora maioria da população. E aceitam herdar um ressentime­nto que não é seu, além de se insinuarem socialment­e enquanto herdeiros.

Falta uma semana para o 25 de Abril. Para alguns, falta uma vida inteira.

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