Antes de há cinquenta anos
Velhos homens têm velhas saudades. A saudade é um desejo de viagem para um sítio aonde não podemos regressar. De tanto desejarmos esse destino, mesmo que por magia conseguíssemos voltar, não o reconheceríamos. A saudade alterou-o, tornou-o irreconhecível: mais do que um regresso, seria a chegada a um sítio inventado.
Todos guardamos dentro de nós novos sítios velhos, tempos tornados paradisíacos. Por norma a infância, se feliz – e a juventude, feliz ou não: recordá-la faz sentir nos braços a antiga força, que tudo podia transformar. Os mais sensatos percebem que não há regresso, não há destino e o resto é ilusão.
As saudades que certos veteranos têm dos tempos da guerra (provavelmente os que não foram verdadeiramente tocados por ela) confundem essa experiência com um ideal de juventude que nada diz da própria guerra. Mas que diz muito sobre a velhice.
O mesmo se passa com quem sente saudades de há 50 anos, antes do 25 de Abril. Falo de classes privilegiadas cuja juventude, passada em ditadura, lhes parece agora um país perdido em que eles e as suas famílias tinham um lugar claro, uma reverência própria, e um sentido de si concordante com o regime. Uma doce conformidade posta em causa pela Revolução, pelo calor do PREC e pela consolidação de uma outra coisa que não reconheciam, mas que se chamava Democracia.
Toda a minha vida vi-os marcados pelo tempo: os meus avós paternos e maternos emigrados, os meus avós em fuga.
Nestes casos, a rejeição do tempo que felizmente acabou junta-se ao amor por quem se manteve resoluto em que esse tempo não podia ter acabado. Por quem – não tendo qualquer função concreta no regime – viu ruir a sua mundividência.
Bendito ruir para o país, e que curiosas consequências: ter nascido em plena Democracia, o Estado Novo ser uma época quase ficcional, de tão distante, e no entanto conviver com avós incapazes de se desiludir e de olhar para o passado como ele foi, sem a distorção da saudade.
Mais interessante e perigosa é a estranha saudade da gente nova. Volta e meia, encontro os meus avós em pessoas da minha idade, até em pessoas mais novas. Que Tetris se lhes deu, para encaixarem em si vidas que não viveram?
Gente nova a carpir por um tempo que nunca foi seu, a querer reconquistar a doce conformidade da qual nunca usufruíram. Se os meus avós tiveram a desculpa da velhice (a minha avó ainda falava com pânico do pré-28 de Maio), que desculpa têm estes?
Não só se recusam a decifrar a saudade dos avós, como a confundem com a verdade. São incapazes de ver nos paraísos perdidos uma história diferente para a esmagadora maioria da população. E aceitam herdar um ressentimento que não é seu, além de se insinuarem socialmente enquanto herdeiros.
Falta uma semana para o 25 de Abril. Para alguns, falta uma vida inteira.