Uma despedida sem ponta de azedume
O derradeiro livro de Eugénio Lisboa parte do soneto para uma reflexão mordaz sobre a vida
A poesia foi uma vocação tardia de Eugénio Lisboa (1930-2024). Embora tenha publicado anteriormente neste género (“A matéria intensa”, em 1985, e “O ilimitável oceano”, em 2001), foi nos últimos anos que o gosto pela escrita poética, até então direcionado para a leitura, se acentuou.
Com “a pandemia, a guerra e a idade” a confinarem-no a um espaço limitado, como o próprio admitiu no prefácio desta edição, a poesia e o soneto surgiram como “recursos de entretenimento” que rapidamente se impuseram nos seus hábitos quotidianos.
Depois de ter publicado pela Guerra e Paz “Poemas em tempo de peste” (2020) e “Poemas em tempo de guerra suja” (2022), livros que podem ser lidos como testemunhos de períodos sombrios e incertos, a trilogia fica agora completa com “Soneto modo de usar”, obra que chegou às livrarias uma semana antes da morte do autor, ocorrida no dia 9 de abril deste ano.
Apesar do aparente tom didático, o que encontramos no livro é tudo menos doutoral ou pomposo. Com a erudição e a espirituosidade que sempre o acompanharam, o ensaísta (que cultivava um apreço muito especial pela obra de José Régio) resgata esta arte poética muito particular.
Onde muitos autores, mesmo consagrados, falharam na tentativa de “iluminar um conceito ou uma emoção profunda” através do recurso a 14 versos de dez sílabas, Eugénio Lisboa aventura-se sem receio.
Se “o soneto anseia voar”, cada um dos mais de 120 aqui reunidos é uma aproximação às muitas dimensões da vida do autor de “Acta est fabula”. É, todavia, a condição de leitor a que é convocada com maior frequência, nada que espante em quem consagrou grande parte dos esforços, ao longo dos anos, a procurar difundir a paixão pela literatura.
De Oscar Wilde a Voltaire, de Stendhal a Charlotte Brontë, “os livros que lemos na adolescência / marcam-nos para toda a vida: / devoramo-los com grande envolvência / com fome saciada e repetida”.
“Em busca do passado perdido”, são evocadas também memórias que o tempo não fez esquecer, com as paisagens africanas onde passou a infância bem presentes, mas também considerações isentas de azedume sobre o Mundo e as suas circunstâncias. “E quanto se vive, quando se vive?”, questiona no testamentário soneto intitulado “A arte de viver”.