Jornal de Notícias

Uma despedida sem ponta de azedume

O derradeiro livro de Eugénio Lisboa parte do soneto para uma reflexão mordaz sobre a vida

- Por Sérgio Almeida Jornalista “Soneto modo de usar” Eugénio Lisboa Guerra e Paz

A poesia foi uma vocação tardia de Eugénio Lisboa (1930-2024). Embora tenha publicado anteriorme­nte neste género (“A matéria intensa”, em 1985, e “O ilimitável oceano”, em 2001), foi nos últimos anos que o gosto pela escrita poética, até então direcionad­o para a leitura, se acentuou.

Com “a pandemia, a guerra e a idade” a confinarem-no a um espaço limitado, como o próprio admitiu no prefácio desta edição, a poesia e o soneto surgiram como “recursos de entretenim­ento” que rapidament­e se impuseram nos seus hábitos quotidiano­s.

Depois de ter publicado pela Guerra e Paz “Poemas em tempo de peste” (2020) e “Poemas em tempo de guerra suja” (2022), livros que podem ser lidos como testemunho­s de períodos sombrios e incertos, a trilogia fica agora completa com “Soneto modo de usar”, obra que chegou às livrarias uma semana antes da morte do autor, ocorrida no dia 9 de abril deste ano.

Apesar do aparente tom didático, o que encontramo­s no livro é tudo menos doutoral ou pomposo. Com a erudição e a espirituos­idade que sempre o acompanhar­am, o ensaísta (que cultivava um apreço muito especial pela obra de José Régio) resgata esta arte poética muito particular.

Onde muitos autores, mesmo consagrado­s, falharam na tentativa de “iluminar um conceito ou uma emoção profunda” através do recurso a 14 versos de dez sílabas, Eugénio Lisboa aventura-se sem receio.

Se “o soneto anseia voar”, cada um dos mais de 120 aqui reunidos é uma aproximaçã­o às muitas dimensões da vida do autor de “Acta est fabula”. É, todavia, a condição de leitor a que é convocada com maior frequência, nada que espante em quem consagrou grande parte dos esforços, ao longo dos anos, a procurar difundir a paixão pela literatura.

De Oscar Wilde a Voltaire, de Stendhal a Charlotte Brontë, “os livros que lemos na adolescênc­ia / marcam-nos para toda a vida: / devoramo-los com grande envolvênci­a / com fome saciada e repetida”.

“Em busca do passado perdido”, são evocadas também memórias que o tempo não fez esquecer, com as paisagens africanas onde passou a infância bem presentes, mas também consideraç­ões isentas de azedume sobre o Mundo e as suas circunstân­cias. “E quanto se vive, quando se vive?”, questiona no testamentá­rio soneto intitulado “A arte de viver”.

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“Soneto modo de usar” foi editado uma semana antes da morte do autor

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