Assobiar para um parágrafo
um país que espera para ser resgatado em segredo enquanto o segredo de justiça é espezinhado todos os dias através de pombos-correios e de fugas de informação que ninguém parece querer travar. A raiz que continua a desagregar-se e a ser levada pela corrente é a da presunção de inocência, um dos princípios pilares do Estado de direito na sua relação com a Justiça. Vivemos este tempo em que pessoas são levadas à lama, espezinhadas e caluniadas, nomes manchados para sempre, famílias que assistem à invasão da sua intimidade em operações especiais, casas e ilhas que são invadidas por centenas de inspectores para deter pessoas dias a fio sem culpa formada que as habilite a um minuto sequer de prisão. E tudo acontece permarias nentemente, numa infindável sucessão de atropelos, perante um voyeurismo de baba e um ímpeto justicialista que não parece olhar a meios. Perante a ausência de explicações da Procuradoria-Geral da República, não podemos pôr em causa o elementar: é impensável que o poder político interfira na Justiça. Mas podemos ficar assim, impávidos e serenos, perante este protótipo de uma República de Juízes que provoca abalos sísmicos no sistema democrático e que interfere nas decisões políticas do país?
A ausência de prestação de contas de Lucília Gago, procuradora-geral da República, é uma anedota que acaba em adivinha. Quem é quem na Justiça quando os seus mais altos responsáveis se comportam como algozes? A soberba de Lucília Gago ao nada dizer, ao nada querer explicar, ao não ter o mínimo interesse na “res publica” que deveria defender intransigentemente, ao não procurar – nem sequer levemente – pôr cobro a este enfeite-simulacro de justiça repleto de decisões arrasadoras e contraditóHá entre os diversos intérpretes e instância judiciais, só podia ter um corolário: vergonha ou demissão. Aparentemente, só quem a ouviu a pode sensibilizar.
Marcelo Rebelo de Sousa não pode assobiar para o ar. A crise política que assinou com caneta presidencial, ao permitir que um parágrafo indigente tivesse mudado o curso (mau ou bom, não interessa aqui) de uma maioria absoluta eleita, é algo que ficará para sempre como mancha fúnebre traduzida numa marcha de guia para António Costa. Ouvir o presidente dizer que, perante a recusa do Tribunal da Relação de Lisboa ao recurso do Ministério Público, “começa a ser mais provável haver um português no Conselho Europeu” é aterrador pelo cambalacho. O tempo permitirá ajuizar sobre a dimensão do preço a pagar, mas a mudança de paradigma é já indesmentível. Cada um a salvar a própria pele. A demagogia ganhou a luta e a democracia presta contas a torcionários que cuidam de a destruir por dentro.
Podemos ficar assim, impávidos e serenos, perante este protótipo de uma República de Juízes que provoca abalos sísmicos no sistema democrático e que interfere nas decisões políticas do país?