Jornal de Notícias

A despedida

- POR Rui Cardoso Martins O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA

A mancha ficou entre a segunda e a terceira filas da Avenida Cidade de Luanda, sentido norte-sul, junto ao semáforo. Ficou lá muito tempo. A princípio arterial, quase cor-de-rosa e brilhante como a luz do semáforo, depois vermelha, púrpura e a escurecer. No fim, parecia óleo de motor impregnado no alcatrão, não o sangue da dona Elvira. O camionista passou lá muitas vezes e diz que o esquema da polícia foi mal desenhado. Ele mora perto do local e garante que a mancha estava mais à direita do que no croquis.

– Esteve lá a mancha muito tempo, vermelha. Não concordo com o desenho, parece que foi do lado esquerdo mais foi mais do direito, reparou ele.

Um dia não reparou, no entanto, que o seu camião esmagava a dona Elvira em cima da passadeira. Passou o rodado dianteiro esquerdo, passou o rodado traseiro esquerdo, e só carregou no travão porque estranhou os outros condutores.

– Só ouvi umas buzinas e uns condutores a fazerem-me sinal com as mãos. Pensei que fosse outra coisa, uma porta aberta do camião. Parei e só depois vi

– A senhora no chão?

– Sim.

O tribunal ficou em silêncio alguns segundos. Todos sentimos, parece-me, que íamos entrar num mundo técnico insuportáv­el. O da fragilidad­e da vida humana: ultrapassa-se uma tonelagem e somos moscas. Era o que aquele camionista nos estava a mostrar. Ele parecia estar a descrever a caixa de um camião com 14,5 metros, como se mete a primeira, segunda e terceira velocidade­s. – Não senti nada, nada, nada.

– Nem uma vibração do seu veículo? – Nada.

Ouvir, também não. Ele disse que é impossível ouvir alguma coisa na cabina, por causa do barulho do motor.

– Nem oscilava?, continuou a procurador­a.

– Não, aquilo é muito grande.

– Ia cheio?

– Não.

– Mesmo assim?!

– Mesmo assim.

Ele disse que parou no sinal vermelho e que, ao avançar, olhou primeiro para a direita, depois para a esquerda, e arrancou “no máximo a cinco à hora”.

– É estranho como é que a senhora já estava na fila do meio e não a viu.

– Se tivesse visto alguém não teria passado por cima dela!

A voz dele tremeu. No tribunal estava no chão e no chão sentem-se as coisas. Não é uma cabina a 1,80 metros do solo.

A defesa do camionista foi esta: a vítima teria entrado na estrada fora da passadeira, avançando transversa­lmente, e passara colada à dianteira do camião.

– Se alguém passar colado ao camião, não tenho hipóteses nenhumas. Não se vê. Só se for uma pessoa muito alta.

– A senhora era alta?

– A senhora era bastante baixa.

Elvira era uma velhota que costumava caminhar naquela passadeira uma vez por semana, às terças. Era a filha que a levava, no carro, porque vinham as duas da visita ao cemitério. Deixava a mãe quase às portas do metro, disse a filha no tribunal. Estava branca como papel e a voz saía-lhe aos solavancos pequenos, como cascata. Não se viam lágrimas cá fora porque, pareceu-me, iam directamen­te dos sacos para a garganta, pelos ribeiros internos da cara.

– Deixei a minha mãe no semáforo e ela atravessou para o outro lado. Atravessou quando estava vermelho para os veículos e verde para os peões. Viu a mãe passar o camião, da direita para a esquerda, e ficar fora de vista. Via perfeitame­nte o lado direito do camião. A mãe já estava no meio da estrada e em cima da passadeira. O camião avançou, o primeiro veículo logo que abriu o sinal.

A filha também não ouviu, não sentiu nada. Estava convencida de que a mãe estava do outro lado, mas não a viu.

– Eu pensava que ela me ia dizer adeus, como sempre.

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