O homem dos tectos falsos
Lembram-se dos cheques bancários? Sou tão antigo que ainda tenho comigo, e utilizáveis, cheques de papel, passei um há meses, mas o mundo acelerou tanto que assinar cheques provoca risota geral em 2024, quando inteiros sistemas bancários e de transportes cabem no telemóvel. Também usei faxes para enviar crónicas, as máquinas faziam um barulho lindo de ralos no Verão do Alentejo. Com isto, lembrei-me do jovem Silva — já não será jovem, mas que será feito dele?
Na altura, concluí que há pessoas que se deviam abster de sonhar. O jovem Silva apresentava o seu caso no tribunal: — Infelizmente não fui esperto o suficiente para perceber que a situação não era tão boa como parecia.
Silva apareceu no tribunal numa figura húmida, até os óculos pareciam suar. Enrolava a mão papuda na outra e tinha a voz trémula, minúscula, que siflava do corpo como um balão a esvaziar. A sua profissão definia-se com uma sucessão de negativas e um efeito de irrealidade:
— Estou desempregado de montador de tectos falsos.
Longe estavam os tempos em que ele era um montador de tectos falsos cheio de clientela! Chegou a casar... antes de perder o crédito à habitação. O jovem Silva sonhava alto e um dia entrou num supermercado e pagou com dois cheques avultados. — Era mais produtos de higiene pessoal. Mas também uma consola vídeo, cd’s e um televisor. A juíza achou serem muitas coisas e leu a lista, intrigada:
— televisão, cd’s, exel, rexona, linic, linic, rexona, pantene
— Foi o contrato verbal que eu tive com um senhor que me levou a comprar essas coisas. Aqui eram mais baratos do que em Inglaterra.
O jovem Silva explicou o instante mefistotélico da sua vida. Ele vivia numa cidade do interior, até aí em paz.
— Esse senhor convidou-me a embarcar para Inglaterra para ir montar tectos falsos. O contrato verbal que eu tinha é que, quando eu chegasse lá, esse senhor depositava 600 contos [contos!, dava agora 3000 euros] na minha conta.
— Quer dizer, o senhor ainda nem tinha a certeza de que ia embarcar, mas já contava com o dinheiro.
— Não chegámos a embarcar porque quando chegámos a Lisboa nem sequer o bilhete tínhamos!
O jovem Silva disse “tínhamos”, enervado. — Éramos seis e convenci-os a despedirmo-nos todos para ir para lá. Despedi-me de um bom emprego pela ideia de ir para Inglaterra!
Chegavam os seis e alugavam um apartamento. De dia tectos falsos, alinhar a cavilha, levantar a placa, esticar o cabo. À noite tv e consola vídeo, mortal combat, duche rexona linic e rins na frigideira, estes gajos bebem a cerveja quente. Era um sonho bonito, mas o resultado:
— Criei um buraco à minha volta, disse. O jovem Silva, que depois se divorciou, passara tantos cheques carecas que não podia assinar mais nenhum na vida. Um problema que não sabia resolver porque os fornecedores de tectos falsos trabalhavam à base de cheques.
— Eu estou arrependido e quero pagar, mas preciso de alguns meses.
A juíza deu-lhe dez dias, até à sentença, para saldar o que devia. Lembro-me do jovem Silva a perguntar ao dono do supermercado:
— Isso é já para a semana, eu não consigo. Não me dá mais tempo?
— Não, disse o outro, e sorriu para o jovem Silva, sonhadoramente. Saudades, Silva, já deves ter uma app.