Jornal de Notícias

O homem dos tectos falsos

- Rui Cardoso Martins POR jornalista O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA

Lembram-se dos cheques bancários? Sou tão antigo que ainda tenho comigo, e utilizávei­s, cheques de papel, passei um há meses, mas o mundo acelerou tanto que assinar cheques provoca risota geral em 2024, quando inteiros sistemas bancários e de transporte­s cabem no telemóvel. Também usei faxes para enviar crónicas, as máquinas faziam um barulho lindo de ralos no Verão do Alentejo. Com isto, lembrei-me do jovem Silva — já não será jovem, mas que será feito dele?

Na altura, concluí que há pessoas que se deviam abster de sonhar. O jovem Silva apresentav­a o seu caso no tribunal: — Infelizmen­te não fui esperto o suficiente para perceber que a situação não era tão boa como parecia.

Silva apareceu no tribunal numa figura húmida, até os óculos pareciam suar. Enrolava a mão papuda na outra e tinha a voz trémula, minúscula, que siflava do corpo como um balão a esvaziar. A sua profissão definia-se com uma sucessão de negativas e um efeito de irrealidad­e:

— Estou desemprega­do de montador de tectos falsos.

Longe estavam os tempos em que ele era um montador de tectos falsos cheio de clientela! Chegou a casar... antes de perder o crédito à habitação. O jovem Silva sonhava alto e um dia entrou num supermerca­do e pagou com dois cheques avultados. — Era mais produtos de higiene pessoal. Mas também uma consola vídeo, cd’s e um televisor. A juíza achou serem muitas coisas e leu a lista, intrigada:

— televisão, cd’s, exel, rexona, linic, linic, rexona, pantene

— Foi o contrato verbal que eu tive com um senhor que me levou a comprar essas coisas. Aqui eram mais baratos do que em Inglaterra.

O jovem Silva explicou o instante mefistotél­ico da sua vida. Ele vivia numa cidade do interior, até aí em paz.

— Esse senhor convidou-me a embarcar para Inglaterra para ir montar tectos falsos. O contrato verbal que eu tinha é que, quando eu chegasse lá, esse senhor depositava 600 contos [contos!, dava agora 3000 euros] na minha conta.

— Quer dizer, o senhor ainda nem tinha a certeza de que ia embarcar, mas já contava com o dinheiro.

— Não chegámos a embarcar porque quando chegámos a Lisboa nem sequer o bilhete tínhamos!

O jovem Silva disse “tínhamos”, enervado. — Éramos seis e convenci-os a despedirmo-nos todos para ir para lá. Despedi-me de um bom emprego pela ideia de ir para Inglaterra!

Chegavam os seis e alugavam um apartament­o. De dia tectos falsos, alinhar a cavilha, levantar a placa, esticar o cabo. À noite tv e consola vídeo, mortal combat, duche rexona linic e rins na frigideira, estes gajos bebem a cerveja quente. Era um sonho bonito, mas o resultado:

— Criei um buraco à minha volta, disse. O jovem Silva, que depois se divorciou, passara tantos cheques carecas que não podia assinar mais nenhum na vida. Um problema que não sabia resolver porque os fornecedor­es de tectos falsos trabalhava­m à base de cheques.

— Eu estou arrependid­o e quero pagar, mas preciso de alguns meses.

A juíza deu-lhe dez dias, até à sentença, para saldar o que devia. Lembro-me do jovem Silva a perguntar ao dono do supermerca­do:

— Isso é já para a semana, eu não consigo. Não me dá mais tempo?

— Não, disse o outro, e sorriu para o jovem Silva, sonhadoram­ente. Saudades, Silva, já deves ter uma app.

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