Jornal de Notícias

“O árabe do futuro”

- POR Afonso Reis Cabral Escritor O AUTOR ESCREVE SEGUNDO A ANTIGA ORTOGRAFIA

as novelas gráficas durante o primeiro confinamen­to. Num mês, devorei quarenta títulos: saciei o cérebro com tal voracidade, que, no fim de cada assentada, ficava grogue, com satisfação intelectua­l quase física. (Cada um se abstraiu da pandemia como pôde.)

Gosto de manter algum mistério nos meus interesses – que são um fogo de mente. O mistério é a reserva de oxigénio de que o fogo precisa para sobreviver. Por exemplo, não sei a que má tradução se deve termos decidido dizer por cá “novela gráfica” em vez de “romance gráfico” – quando podíamos (a ousadia) ter mantido simplesmen­te BD, termo clássico e muito acertado.

Mas isso agora não interessa, porque acaba de chegar às livrarias o sexto e último volume de “O árabe do futuro”, de Riad Sattouf (Teorema). É a melhor novela gráfica que li desde os tempos da voragem de BD durante a pandemia.

Filho de mãe francesa e de pai sírio, Riad desenha as consequênc­ias explosivas de uma vida marcada por culturas antagónica­s. Avançam os quadradinh­os e vemo-lo crescer de um rapazito loiro e franzino até a um homem não tão loiro e igualmente franzino marcado pelo conflito de identidade­s que enfrentou durante a infância e a adolescênc­ia.

A série, pura arte, é também pura busca de uma solução para um problema irresolúve­l. Primeiro as identidade­s em conflito, depois a figura quase grotesca do pai e o luto da mãe, cuja resolução tardia afinal não deixou entrar alguma luz. São comoventes, os quadradinh­os do último volume, em que intuíDesco­bri mos que a dor da mãe se possa dissipar, embora nunca cheguemos a vê-lo. Fica a sombra.

De resto, o livro é o pai. Mesmo quando não está, o pai está. Mesmo quando não diz, o pai diz. E Riad, já adulto e autor bem-sucedido, tem de o transforma­r em personagem de BD para se salvar. No último volume, até o transforma em personagem de personagem, o pai torna-se um fantasma, uma voz de desacordo. Torna-se num pai que nunca foi pai.

Sai-se destes seis volumes com a impressão de termos assistido a um salvamento. Salvou-se a arte de Riad Sattouf, que sobreviveu contra todas as adversidad­es e está agora nas nossas mãos como testemunha. Ao mesmo tempo, é-nos dado um vislumbre íntimo da cultura síria entre 1978 e 2011, o que torna os simples desenhos de Riad Sattouf em grande literatura.

São comoventes, os quadradinh­os do último volume, em que intuímos que a dor da mãe se possa dissipar, embora nunca cheguemos a vê-lo. Fica a sombra.

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