“O árabe do futuro”
as novelas gráficas durante o primeiro confinamento. Num mês, devorei quarenta títulos: saciei o cérebro com tal voracidade, que, no fim de cada assentada, ficava grogue, com satisfação intelectual quase física. (Cada um se abstraiu da pandemia como pôde.)
Gosto de manter algum mistério nos meus interesses – que são um fogo de mente. O mistério é a reserva de oxigénio de que o fogo precisa para sobreviver. Por exemplo, não sei a que má tradução se deve termos decidido dizer por cá “novela gráfica” em vez de “romance gráfico” – quando podíamos (a ousadia) ter mantido simplesmente BD, termo clássico e muito acertado.
Mas isso agora não interessa, porque acaba de chegar às livrarias o sexto e último volume de “O árabe do futuro”, de Riad Sattouf (Teorema). É a melhor novela gráfica que li desde os tempos da voragem de BD durante a pandemia.
Filho de mãe francesa e de pai sírio, Riad desenha as consequências explosivas de uma vida marcada por culturas antagónicas. Avançam os quadradinhos e vemo-lo crescer de um rapazito loiro e franzino até a um homem não tão loiro e igualmente franzino marcado pelo conflito de identidades que enfrentou durante a infância e a adolescência.
A série, pura arte, é também pura busca de uma solução para um problema irresolúvel. Primeiro as identidades em conflito, depois a figura quase grotesca do pai e o luto da mãe, cuja resolução tardia afinal não deixou entrar alguma luz. São comoventes, os quadradinhos do último volume, em que intuíDescobri mos que a dor da mãe se possa dissipar, embora nunca cheguemos a vê-lo. Fica a sombra.
De resto, o livro é o pai. Mesmo quando não está, o pai está. Mesmo quando não diz, o pai diz. E Riad, já adulto e autor bem-sucedido, tem de o transformar em personagem de BD para se salvar. No último volume, até o transforma em personagem de personagem, o pai torna-se um fantasma, uma voz de desacordo. Torna-se num pai que nunca foi pai.
Sai-se destes seis volumes com a impressão de termos assistido a um salvamento. Salvou-se a arte de Riad Sattouf, que sobreviveu contra todas as adversidades e está agora nas nossas mãos como testemunha. Ao mesmo tempo, é-nos dado um vislumbre íntimo da cultura síria entre 1978 e 2011, o que torna os simples desenhos de Riad Sattouf em grande literatura.
São comoventes, os quadradinhos do último volume, em que intuímos que a dor da mãe se possa dissipar, embora nunca cheguemos a vê-lo. Fica a sombra.