Da missa de Henrique IV à cabeça de Maria Antonieta
“Paris vale bem uma missa”, terá dito Henrique de Bourbon, rei de Navarra, em 1593, antes de se converter ao catolicismo para poder ser rei de França, quarto do nome. Emergindo num contexto de guerras religiosas, pôde terminá-las. Com o Édito de Nantes, estabeleceu paz entre protestantes e católicos e, embora não pensasse nos termos em que hoje o fazemos, deu um passo no sentido de incrementar a liberdade de culto.
Paris é foco da atenção global, por causa dos Jogos Olímpicos, e está no espírito de muitas “missas”, graças a uma polémica ridícula em torno da cerimónia de abertura: queixam-se os ofendidos de um dos quadros escarnecer da Última Ceia de Cristo, tal como a pintou Leonardo da Vinci numa parede milanesa, povoando-a de gente que não enquadram numa pouco cristã moral de exclusão.
Podemos dar de barato que o fresco de Da Vinci foi paradigma de muita arte que lhe sucedeu, incluindo “O Festim dos Deuses”, de Jan van Bijlert, apontado como inspiração da cena contestada. Ou até ter por certo que este pintor, calvinista, quis zombar dos católicos ao pôr os deuses gregos numa mesa similar. Mas o absurdo está no facto de a festa olímpica no Sena ressudar paganismo e só ser associada à Paixão porque se criou uma onda de revolta nas redes sociais e afins. É a coisa mais fácil de fazer, em particular para os setores radicais que apostam em minar a tolerância ocidental, para poderem apresentar-se, depois, como salvadores tradicionalistas.
Mais: muitos dos que hoje se proclamam defensores da fé, por causa desta bagatela, estiveram entre os que em 2015 gritaram “Je suis Charlie”. Os mesmos que defenderam a liberdade de representar o profeta Maomé em desenhos de humor não podem indignar-se com isto. Por outro lado, nada aprenderam, recentemente, quando o Papa Francisco recebeu no Vaticano humoristas de todo o Mundo.
Ter estas coisas presentes não significa que se tenha gostado ou não da cerimónia de 26 de julho, muito marcada por uma estética urbana e uma grelha de prioridades, obviamente ideológica, sem aceitação universal. E mais estranho terá sido ver Maria Antonieta decapitada, repetindo o “Ça ira” da Revolução Francesa. A mulher seria um traste, mas fazer da pena de morte espetáculo é um toque de jacobinismo serôdio.
Os mesmos que defenderam a liberdade de representar o profeta Maomé em desenhos de humor não podem indignar-se com isto.