Jornal Madeira

Já esqueci!

- Duarte Caires duartevelo­sacaires@gmail.com ESCREVE À QUINTA-FEIRA, TODAS AS SEMANAS

Egnaldo foi um dos empregados lá de casa, quando eu vivia num bairro à entrada da antiga Vila Junqueiro, uma pequena e fascinante cidade perdida no fundo da Zambézia. Todas as famílias em Moçambique, mesmo as que são pobres, têm um funcionári­o doméstico, um rapaz vindo do mato, ainda mais pobre, pois em todo o lado há gente mais abaixo, que trata de tudo por meia dúzia de meticais, teto, caril e esteira. Sendo assim, eu vivia numa palhota e tinha um empregado, tal como os

meus vizinhos.

O rapaz possuía a estranha e incrível particular­idade de não conseguir pronunciar o próprio nome e isso era motivo de alegria e gozação para toda a gente.

O problema residia na primeira sílaba. Aquele “E” dava cabo de tudo. Quando alguém lhe perguntava pelo nome, Egnaldo suspendia a atividade do momento, fosse ela qual fosse, endireitav­a-se, pestanejav­a repetidas vezes, esforçava o pensamento, esforçava a concentraç­ão e com muito custo e suor dizia:

– Egnaldo.

Mas nem sempre acertava. Às vezes, dizia Ignaldo, outra vezes Enguenaldo ou Iguinaldo ou Inguinaldo.

As pessoas espantavam-se e insistiam, só para rir:

– Como é mesmo o seu nome? E ele ia repetindo até acertar. Em certas ocasiões, Egnaldo tardava tanto que as pessoas ficavam mesmo com a impressão de que, de facto, ele não sabia nada acerca de si e da sua identidade. E gracejavam:

– É possível uma coisa destas! Você não sabe como se chama?

Ao que ele respondia: – Já esqueci.

E dizia-o com uma naturalida­de semelhante a água que corre no rio ou vento que aplana capim, tão simples e óbvia, uma coisa assim de vir ao mundo como outra qualquer, como o sol ou a lua, como a vida que há em tudo, nos leões e nas pedras, como a morte também, isto de esquecer-se do nome do pé para a mão, uma coisa tão fácil e corriqueir­a, tão certa e concreta, tão de poeta este não saber do ser.

– Já esqueci.

Egnaldo esquecia-se com frequência dos movimentos que devia imprimir à língua para se afirmar de nome próprio aos outros e, como se isso não bastasse, padecia de uma ligeira gaguez, pelo que às vezes os seus esforços tornavam-se ainda mais penosos e divertidos para a assistênci­a. – E-e-e-gui-gui-gui-nal-nal-nal-do. Ou então a resposta saía disparada como se fosse composta por uma única sílaba:

– Egnaldo, patrão!

No restante, Egnaldo safava-se mais ou menos bem, essa coisa de acender fogo, preparar comida, lavar roupa, arrumar a casa, muito melhor do que eu, sem dúvida, que nunca me safei lá como deve ser em coisa alguma, a verdade seja dita, em tudo sou ainda hoje tão tosco como o rapaz em África na hora de dizer o nome.

E tantas vezes também me apetece suspirar:

– Já esqueci.

Sim, já esqueci como se luta pela vida, já esqueci como se procura emprego, já esqueci como se mantém um emprego, já esqueci como se aproveita o tempo livre e como se dorme bem, já esqueci como é fazer parte de uma família, já esqueci como é ser um país e acreditar nele, já esqueci como é ter uma ideia e naufragar com ela, já esqueci como é ser o carneiro feliz no meio do rebanho e como é que se bale ódio e amor no seio dos outros, já esqueci isto e aquilo e aqueloutro também, a minha terra, o meu passado, já esqueci o tamanho da dor e da ilusão, já esqueci o tamanho do mundo e do coração.

É verdade, já esqueci. Porém, as mais das vezes lembro-me de tudo, ai lembro-me muito bem de tudo, a começar pelo meu nome. Nem vos digo…

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal