Já esqueci!
Egnaldo foi um dos empregados lá de casa, quando eu vivia num bairro à entrada da antiga Vila Junqueiro, uma pequena e fascinante cidade perdida no fundo da Zambézia. Todas as famílias em Moçambique, mesmo as que são pobres, têm um funcionário doméstico, um rapaz vindo do mato, ainda mais pobre, pois em todo o lado há gente mais abaixo, que trata de tudo por meia dúzia de meticais, teto, caril e esteira. Sendo assim, eu vivia numa palhota e tinha um empregado, tal como os
meus vizinhos.
O rapaz possuía a estranha e incrível particularidade de não conseguir pronunciar o próprio nome e isso era motivo de alegria e gozação para toda a gente.
O problema residia na primeira sílaba. Aquele “E” dava cabo de tudo. Quando alguém lhe perguntava pelo nome, Egnaldo suspendia a atividade do momento, fosse ela qual fosse, endireitava-se, pestanejava repetidas vezes, esforçava o pensamento, esforçava a concentração e com muito custo e suor dizia:
– Egnaldo.
Mas nem sempre acertava. Às vezes, dizia Ignaldo, outra vezes Enguenaldo ou Iguinaldo ou Inguinaldo.
As pessoas espantavam-se e insistiam, só para rir:
– Como é mesmo o seu nome? E ele ia repetindo até acertar. Em certas ocasiões, Egnaldo tardava tanto que as pessoas ficavam mesmo com a impressão de que, de facto, ele não sabia nada acerca de si e da sua identidade. E gracejavam:
– É possível uma coisa destas! Você não sabe como se chama?
Ao que ele respondia: – Já esqueci.
E dizia-o com uma naturalidade semelhante a água que corre no rio ou vento que aplana capim, tão simples e óbvia, uma coisa assim de vir ao mundo como outra qualquer, como o sol ou a lua, como a vida que há em tudo, nos leões e nas pedras, como a morte também, isto de esquecer-se do nome do pé para a mão, uma coisa tão fácil e corriqueira, tão certa e concreta, tão de poeta este não saber do ser.
– Já esqueci.
Egnaldo esquecia-se com frequência dos movimentos que devia imprimir à língua para se afirmar de nome próprio aos outros e, como se isso não bastasse, padecia de uma ligeira gaguez, pelo que às vezes os seus esforços tornavam-se ainda mais penosos e divertidos para a assistência. – E-e-e-gui-gui-gui-nal-nal-nal-do. Ou então a resposta saía disparada como se fosse composta por uma única sílaba:
– Egnaldo, patrão!
No restante, Egnaldo safava-se mais ou menos bem, essa coisa de acender fogo, preparar comida, lavar roupa, arrumar a casa, muito melhor do que eu, sem dúvida, que nunca me safei lá como deve ser em coisa alguma, a verdade seja dita, em tudo sou ainda hoje tão tosco como o rapaz em África na hora de dizer o nome.
E tantas vezes também me apetece suspirar:
– Já esqueci.
Sim, já esqueci como se luta pela vida, já esqueci como se procura emprego, já esqueci como se mantém um emprego, já esqueci como se aproveita o tempo livre e como se dorme bem, já esqueci como é fazer parte de uma família, já esqueci como é ser um país e acreditar nele, já esqueci como é ter uma ideia e naufragar com ela, já esqueci como é ser o carneiro feliz no meio do rebanho e como é que se bale ódio e amor no seio dos outros, já esqueci isto e aquilo e aqueloutro também, a minha terra, o meu passado, já esqueci o tamanho da dor e da ilusão, já esqueci o tamanho do mundo e do coração.
É verdade, já esqueci. Porém, as mais das vezes lembro-me de tudo, ai lembro-me muito bem de tudo, a começar pelo meu nome. Nem vos digo…