Esquecer pode ser trágico
A população vai esquecendo quem, contra tantas adversidades, com garra e determinação, lutou para construir a freguesia ou um concelho melhor.
Ésempre um prazer ler as crónicas do Henrique Raposo, no Expresso. Há dias, fiquei deliciado com o título “Mostra-me um herói e eu escrevo-te uma tragédia”. Veio-me à mente o momento político que se vive na Madeira. No seu texto, o singular cronista fazia alusão a uma recente minissérie televisiva da HBO, intitulada “Show me a Hero”. Conta a história do presidente duma câmara municipal do estado de Nova York que, depois de variadíssimas pressões e de muita hesitação, acaba por permitir (dando cumprimento a uma ordem judicial) que se faça a construção dum bairro social para negros, numa zona habitacional maioritariamente ocupada por brancos, da classe média alta, que se opõem terminantemente à iniciativa. A obra fez-se. Passados uns anos, retirado da política, o “mayor” foi visitar a zona, para ver como é que as coisas estavam a funcionar. No bairro, nenhum dos moradores sequer o reconheceu, mas foram muitos os habitantes brancos das redondezas que lançaram ferozes apupos e piropos, em todos os cantos da
sua passagem.
Desta história podemos retirar várias lições. Raposo, para além de referir a tragédia de a memória do Mal prevalecer sobre a memória do Bem, quis enfatizar o facto de a razão republicana ser hierarquicamente superior a uma qualquer vontade maioritária, decorrente da democracia. Nem sempre a maioria tem razão. Nem sempre a sua vontade deve prevalecer. Embora se saiba que a memória do eleitorado é curta e que, em política, não há eternos agradecimentos, não deixa de ser algo trágico o facto dos moradores, os beneficiados, já não terem qualquer memória de quem, contra a oposição de outros, lutou pelo seu bem-estar.
Aqui chegamos à atual situação da Madeira. O facto tem acontecido em muitas das nossas câmaras municipais. A população vai esquecendo quem, contra tantas adversidades, com garra e determinação, lutou para construir a freguesia ou um concelho melhor para cada um dos seus habitantes. Mas se, numa autarquia, quando isso acontece, a tragédia, como quem diz, se abate sobre os políticos que ficam esquecidos, numa região ou num país, com poderes legislativos e governamentais, as consequências podem não ser semelhantes. Quando a população não sabe distinguir o bem do mal, quando não sabe reconhecer quem verdadeiramente luta por ela, então a tragédia pode abater-se sobre o próprio povo. Foi o que aconteceu recentemente na Venezuela. Uma vítima ao contrário da tragédia do bairro.
A referida série televisiva aponta para aspectos fundamentais da política e da intrínseca natureza humana. O homem tem muitas vezes tendência para esquecer quem lhe fez o bem, reservando sempre um espaço mental para recordar algum mal que lhe possa, no seu entender, ter sido feito. Mas para uma mudança, para criar outra confiança, é necessário que as novas perspetivas, espectativas, vontades e desejos estejam corporizados em novos e melhores protagonistas. É isso que os madeirenses vão avaliar. Estes, pelo histórico das últimas décadas, ao contrário dos moradores do dito bairro, sempre foram reconhecidos e provavelmente não vão esquecer.