Jornal Madeira

Chegar a novo

Um dia conheceu o amor, quando já ninguém o esperava. Estremunho­u-se. Exaltou-se e até corou. O coração desalinhou-se.

- Sandra Cardoso sandracard­osojornali­sta@gmail.com ESCREVE AO DOMINGO, DE 2 EM 2 SEMANAS

Estava a bater o meio século. Em tempos diria que estava a chegar a velho, mas em rigor nunca fora jovem, se a juventude for sede de aventura e conhecimen­to.

Continuava a acordar todo os dias com aquela vista de mar imenso, mas sem vontade de cruzar a linha do horizonte. Bastava-lhe pouco mais do que aos seus pais e avós. Acordar de manhã e viver a vida dentro das fronteiras da aldeia, que era o seu mundo inteiro. Raramente tinha necessidad­e de passar as barreiras da freguesia, não fosse para ir ao médico ou tratar de alguma situação que assim o exigisse. Não se sentia impelido a ver de perto e arranjava conforto e consolo em viver ao ritmo da terra, a única que sentia sua. Semear, cuidar, colher. Um poema escrito entre ervas daninhas e flores silvestres, cheirinho a urze e acidez de uma azeda na boca. E não é que não soubesse o que se passava fora dali. Já tinha ouvido aventuras de outros para quem a aldeia não era mais do que as amarras da mocidade. Escutava, mas sem arrepio ou sobressalt­o. Nem as festas das freguesias vizinhas faziam mexer as hormonas, na era em que deviam fervilhar. Estudou pouco e os livros pouco lhe diziam. Nem era que fosse infeliz. Mas não tinha o entusiasmo para além da simpática descrição com que dava os bons dias ou tinha as conversas circunstan­ciais no café da aldeia onde observava o mundo, sem necessidad­e de se emergir nele. Passivo. Constante.

Um dia conheceu o amor, quando já ninguém o esperava. Estremunho­u-se. Exaltouse e até corou. O coração desalinhou-se. ‘Agora, depois de velho?’, sussurrava­m as mulheres da aldeia, nas tardes de maledicênc­ias, por detrás dos sorrisos falsos. Começou a olhar os barcos cheios de gente de outros credos e línguas com curiosidad­e. Tinha quase 50 anos, talvez fosse ainda a tempo de chegar a novo.

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