Chegar a novo
Um dia conheceu o amor, quando já ninguém o esperava. Estremunhou-se. Exaltou-se e até corou. O coração desalinhou-se.
Estava a bater o meio século. Em tempos diria que estava a chegar a velho, mas em rigor nunca fora jovem, se a juventude for sede de aventura e conhecimento.
Continuava a acordar todo os dias com aquela vista de mar imenso, mas sem vontade de cruzar a linha do horizonte. Bastava-lhe pouco mais do que aos seus pais e avós. Acordar de manhã e viver a vida dentro das fronteiras da aldeia, que era o seu mundo inteiro. Raramente tinha necessidade de passar as barreiras da freguesia, não fosse para ir ao médico ou tratar de alguma situação que assim o exigisse. Não se sentia impelido a ver de perto e arranjava conforto e consolo em viver ao ritmo da terra, a única que sentia sua. Semear, cuidar, colher. Um poema escrito entre ervas daninhas e flores silvestres, cheirinho a urze e acidez de uma azeda na boca. E não é que não soubesse o que se passava fora dali. Já tinha ouvido aventuras de outros para quem a aldeia não era mais do que as amarras da mocidade. Escutava, mas sem arrepio ou sobressalto. Nem as festas das freguesias vizinhas faziam mexer as hormonas, na era em que deviam fervilhar. Estudou pouco e os livros pouco lhe diziam. Nem era que fosse infeliz. Mas não tinha o entusiasmo para além da simpática descrição com que dava os bons dias ou tinha as conversas circunstanciais no café da aldeia onde observava o mundo, sem necessidade de se emergir nele. Passivo. Constante.
Um dia conheceu o amor, quando já ninguém o esperava. Estremunhou-se. Exaltouse e até corou. O coração desalinhou-se. ‘Agora, depois de velho?’, sussurravam as mulheres da aldeia, nas tardes de maledicências, por detrás dos sorrisos falsos. Começou a olhar os barcos cheios de gente de outros credos e línguas com curiosidade. Tinha quase 50 anos, talvez fosse ainda a tempo de chegar a novo.