Jornal Madeira

O último momento

Ainda persistia uma certa vida que nos percorria e que aceitávamo­s porque queríamos acreditar no futuro.

- Raquel Gonçalves raquelkiva@gmail.com ESCREVE À SEGUNDA-FEIRA, TODAS AS SEMANAS

Como saber do último momento? A última respiração, o último gesto, a última consciênci­a do mundo?

Não há como saber entre os gestos que se repetem, entre o mecanismo de estar vivo e respirar como quem não sente. Os dias sucedem-se, as noites, um certo quotidiano em espelho.

Mais importante ainda, como perceber a partida quando ainda tudo em volta está como se nada fosse de outra forma?

Mesmo que os sinais estivessem lá, mesmo que tudo indicasse que existia uma partida a anunciar-se e a nomear-se a si mesma como sentido único e obrigatóri­o.

Ainda assim, há sempre uma tendência para aceitarmos as pequenas mudanças que se concedem ao corpo. As pequenas falhas, as pequenas desgraças, as pequenas tragédias, as pequenas indignidad­es e as grandes injustiças.

E, contudo, ainda persistia uma certa vida que nos percorria e que aceitávamo­s porque queríamos acreditar no futuro. Mesmo quando tudo se transforma­va quase em grandes falhas de uma negação de dias por vir.

O último momento foi sempre adiado contra as evidências, contra a tristeza, contra a inevitabil­idade da partida, contra o naufrágio e a ausência.

Sabias tanto mais de tudo isto do que eu. Sabias das coisas que não se negoceiam, que avançam como uma tempestade, que avançam no seu cruel devir.

Sabias do mal do mundo, sobre o qual querias escrever, e sabias que tudo isto, amassado e vivido, é a nossa mais verdadeira e profunda natureza.

Falavas do bondoso caos do mundo e eu reconhecia o caos, mas a bondade não existe em permanênci­a, não é suficiente para aplacar o que nos dói ou a antecipaçã­o da dor em lugares de nós que não sabíamos existirem até o último momento.

Este momento implacável, solitário, profundame­nte nosso.

E depois... depois é apenas o silêncio que fica, o frio que parece rodear tudo como se não houvesse mais vida a percorrer os dias e a nossa respiração.

Depois, é esta falta de palavras que, apesar de tudo, se negoceiam para não cair na banalidade de dizer a falta que nos faz não ter um sentido. Ou simplesmen­te ter perdido o sentido ao quotidiano e à grandeza que existia apenas na vida que tu eras.

Depois, é ter medo ainda de dizer, ou não saber como dizer, ou não saber estar à altura de quem fez das palavras o pensamento e a invenção do mundo.

Temo ainda não saber dizer-te este lugar da tua ausência. Uma ausência que, ao arrepio do seu significad­o literal, preenche tudo como coisa única ou como única coisa possível.

Este é o último momento, mas ainda não é o momento de dizer-te.

Espero a palavra certa, o lugar certo no chão, o tempo certo no mundo. Faltas-me na tua falta. E isto é mais do que muito e mais do que tudo.

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