Jornal Madeira

A vida é sempre assim

- DO FIM AO INFINITO Duarte Caires duartevelo­sacaires@gmail.com

Vou contar como é que isto se processa dentro de mim, esta coisa de escrever, tendo em conta que escrevo todas as semanas, mas nunca sobre a atualidade mediática, raios me partam a atualidade mediática, como já devem ter percebido eu detesto falar sobre aquilo de que todos falam, mil pessoas a comentar o resultado das eleições, mil pessoas a imaginar todos os dias mil cenários de salvação e desgraça, mil pessoas a traçar o futuro da gente e do país e do mundo inteiro por causa disto e daquilo, fogo aqui, chuva além, mil pessoas a dizer que vai ser assim e assado e cozido, a dizer o céu, o inferno e a puta que o pariu sem ouvir a nossa opinião, sem saber de nós, os afogados, e eu também nessa onda, a dizer isto e aquilo sobre este e aqueloutro, era só o que faltava, era mesmo só o que faltava, além do mais nunca seria cem por cento verdadeiro, nunca ninguém é cem por cento verdadeiro sobre nada, nem sequer sobre a própria vida, quanto mais sobre o estado mediático das coisas, que é como quem diz sobre a vida dos outros, os outros a funcionar como escudo de defesa e ataque, o estupor com a vida dos outros, o estupor, mas eu gosto de escrever e sofro por isso, sofro bem mesmo, porque nunca o faço do modo que quero, simples e opulento, veja-se só o tamanho desta frase (aqui sai um palavrão grosso) parece que nunca mais acaba, esta frase, parece que nunca mais acaba e eu ainda não disse nada, sou um vazio total, ainda por cima mal pontuado e cacofónico, mas o certo é que gosto de escrever, gosto de apresentar a palavra como ouro, gosto de adorá-la como um bezerro no deserto e depois gosto de dizer que não vale nada.

A palavra não vale nada.

Tudo o que conta é o sentir. De repente, o telefone toca e é a Pat. Eu atendo e ela diz:

– Olá. Não tenho nada para te dizer. E eu:

– Então, diz-me qualquer coisa especial. E ela:

– Amo-te muito.

A palavra faz sentir, o sentir precisa da palavra.

É assim que a escrita começa e progride e cresce dentro de mim.

O resto é o que aqui vai e o silêncio também.

Às vezes, porém, não há espaço nem tempo nem matéria para tanto e eu dou comigo demasiado pequeno, infinitesi­mal, atómico e o dia transforma-se outra vez numa frase sem fim onde é urgente tirar a roupa e dizer tudo, a noite mal dormida e o sonho erótico, a tua carne para além da carne, o diabo a arder no corpo, e depois este acordar no mundo, hoje sozinho nas zonas altas, ontem contigo, amanhã para sempre ao teu lado, a dizer-te todas as manhãs o que tu me dizes mesmo quando não tens nada para me dizer e segue-se aquele descer por ali abaixo, às vezes a pé, do Laranjal ao centro, ou então de autocarro, montes de gente a entrar e a sair, novos e velhos cansados, um senhor a coxear, as pessoas levantam-se para lhe ceder o lugar, mas ele não quer, ele agradece, ele diz que não se pode sentar, tenho aqui uma máquina, diz ele apontando para a anca, parece que vai a uma consulta no hospital, obrigado, diz ele por três vezes, não me posso sentar, tenho aqui uma máquina, a bater com a mão na anca, e eu ali agarrado num varão, o carro aos solavancos pelo Caminho de Santo António abaixo e eu a pensar caramba já dei volta ao mundo e agora vou de camioneta para a cidade, a pensar naquela canção já fui um conquistad­or, sabem, já fui um conquistad­or, mas a vida é sempre assim, a vida é sempre assim…

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