Jornal Madeira

(Des) Arrumar sonhos

- Rosa Luísa Gaspar Professora

Não, não vou falar sobre novidades e wishlists e estantes por arrumar e tanto livro à espera de ser lido! As nossas estantes não podem negar - muitos de nós leitores somos também colecionad­ores de livros. E, apesar de ser um dos grandes prazeres da nossa vida (da minha pelo menos é), nem sempre é fácil fazer isso.

A primeira questão é, claro, dinheiro. Mas acho esse um assunto chato e, a não ser que sejamos milionário­s, ele é um problema para quase tudo na vida, não só para livros. Por isso, ele está sendo cordialmen­te ignorado neste texto.

Gosto de ideia porque sempre gostei de ler de maneira variada: sempre tento sair da minha zona de conforto como leitora e me provocar a ler coisas novas ou que não costumo ler.

A situação é bem mais simples quando começamos. Ainda somos crianças ou adolescent­es e temos uns 30 livros no quarto. Já começamos a achar a pilha grande, mas provavelme­nte temos alguns espaços entupidos com outras coisas que poderão dar espaço para mais papel. É nessa época que sonhamos com as paredes feitas de livros (pelo menos eu).

Mas claro, sempre temos os nossos jeitos de melhorar a situação: deitar livros na horizontal em cima das fileiras de livros ou até criar as fileiras duplas – maneira triste, porém eficiente de dobrar a capacidade da estante. E uma das vantagens de ter a própria casa é expandir o território ocupado pela coleção. Agora estão na estante denominada “biblioteca”, na sala e já começo a ter outros planos.

A única coisa que me preocupa são as próximas etapas da expansão só restarão livres a cozinha, o porta malas do carro e o lado de fora da janela. Ou quem sabe guardados na biblioteca única e especial bem pertinho da minha casa (risos).

Por meados de 2019, comecei a pensar sobre a quantidade de livros não lidos que tenho na minha estante. Depois de passado o susto, não consegui decidir se aquela quantidade era boa ou má. Amo livros, então ter muitos é algo bom.

Ter possibilid­ades e liberdade para escolher as próximas leituras também vai para o lado de prós da lista.

Ainda assim, acho que nunca tive tantos livros não lidos em casa antes. Sempre acreditei que o verbo principal que devemos usar com os livros é “ler”, não “comprar apenas”. A função do objeto livro só se cumpre com sua leitura e eu tenho cerca de (alguns) deles esperando que eu o faça. Um pouco opressor, não?

Incrível mesmo foi uma conversa que tive com um amigo que também gosta de livros, fiquei sabendo da existência de pessoas que compram livros para enfeitar paredes e estantes, escolhendo os volumes pelas lombadas. Mas e quando chega alguma visita e pergunta sobre os livros? O certo, talvez com um pouco de preconceit­o, mas assusta-me o fato de que alguém compre livros apenas para enfeite, ou pelas capas que são apelativas ou ainda porque são aqueles os mais baratos. Talvez haja quem os compre a peso, será?

Só depois do susto inicial lembrei-me da existência daqueles livros grandes e bonitos que as pessoas compram para as mesinhas da sala ou daqueles que alugam livros em capa dura para posicionar estrategic­amente pelo espaço.

Todos eles me assustam. Gosto de comprar livros e de capas bonitas, mas acho que nada importa se eles não foram lidos. E muitos dos meus não foram e alguns estão ali esperando desde 2019.

Recomendo vivamente o muito acessível, bem-humorado e interessan­tíssimo ensaio de Pierre Bayard, «Comment parler des livres que l'on n'a pas lus?» (que aqui tento traduzir o melhor possível), «a cultura é, sobretudo, uma questão de orientação. Ser culto não é ter lido este ou aquele livro, mas saber orientar-se no conjunto deles; ou seja, saber que os livros formam um conjunto e ser capaz de situar cada elemento em relação aos restantes».

E que 2020 seja conhecido como o ano de desencalhe de leituras!

Rosa Luísa Gaspar escreve à quarta-feira, de 4 em 4 semanas

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