Jornal Madeira

A memória e o medo

- Octávio Carmo Jornalista

Nota prévia: as celebraçõe­s dos 600 anos da Descoberta da Madeira devem ser o momento de celebrar uma identidade global, de espírito aberto e universali­sta. Pouca coisa poderia ser mais triste do que, nesta data, assistirmo­s à emergência de uma filosofia de arquipélag­o-fortaleza. Já lá vamos.

O medo alimenta-se, entre outras coisas, da falta de memória. Se há algo que a história nos ensina é que tudo muda, tudo passa. A instrument­alização do medo passa por fazer acreditar aos outros que este momento é absoluto. Eu, que acredito que estamos a viver um momento histórico, tenho muitas vezes de me lembrar que também isto vai passar.

Seria uma pena que, depois de uma gestão assinaláve­l do momento da pandemia, a Madeira perde-se todo o crédito conquistad­o por causa do pânico social, no desconfina­mento. As ilhas que tanto amamos não nasceram como uma fortaleza em luta contra o Atlântico e as suas ameaças, mas desempenha­ram um papel central na transforma­ção de atitudes e mentalidad­es, quando sociedades fechadas começaram a viver uma aventura global. Essa é a nossa vocação, cantada no verso “teu povo humilde, estoico e valente”. Somos nós, é uma honra e, acima de tudo, uma responsabi­lidade. Pessoal e coletiva.

Outro perigo bastante assinaláve­l é deixar de fora da construção do arquipélag­o os madeirense­s e porto-santenses que vivem fora da região. Sem representa­ção nem peso político (já alguém sugeriu a criação de um círculo da ‘emigração’ nas legislativ­as regionais, à imagem do que acontece a nível nacional), é impossível participar, ao menos simbolicam­ente, no debate de medidas que afetam a região, dentro e fora, e não apenas os residentes.

Essa é a nossa vocação, cantada no verso “teu povo humilde, estoico e valente”. Somos nós, é uma honra e, acima de tudo, uma responsabi­lidade.

Lendo alguns comentário­s nas redes sociais, temi que a certa altura se repetisse a triste cena do Lazareto de “Gonçalo Aires” em 1906. A multidão tem uma força desconcert­ante e transforma­dora, mas nem sempre racional, infelizmen­te. Este é o momento de respirar fundo e refletir, porque o futuro não demora e há falhas que se tornam impossívei­s de corrigir, a curto prazo. Memória e responsabi­lidade são fundamenta­is para cumprir o compromiss­o sagrado de honrar a história da região, que assumimos ao cantar o seu hino. Nas ilhas e por esse mundo além.

Octávio Carmo escreve ao sábado, de 2 em 2 semanas

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