O meu nome ao contrário
Es c revo esta crónica para dizer que estou feliz, muito feliz, embora saiba que neste momento – e noutros também – alguém possa sentir-se triste, muito triste, por minha causa. A vida tem uma tendência obsessiva para nos destapar um flanco sempre que cobre outro, deixando uma parte de nós irremediavelmente desprotegida e empurrando a alma para os abismos da culpa e do remorso, enquanto nos eleva aos píncaros do júbilo e da salvação. Entre estes dois extremos estende-se uma terra-de-ninguém – vasta, fria, inóspita – onde habitam os fantasmas do nosso passado e os belos e ferozes tigres de papel que guardam os nossos segredos e amarguras, bem como as nossas vitórias e glórias.
Estou feliz e tenho de o dizer. De resto, acho que já o disse várias vezes… várias vezes… creio até que esta é uma crónica repetida… parece-me que já escrevi isto… tal e qual… será?...
Sabem, eu não tenho muito controlo sobre o que escrevo, sou anárquico, desorganizado, e ao cabo de 274 crónicas consecutivas, uma por semana sem parar, primeiro à quinta-feira e agora à sexta, cinco anos de crónicas, é natural que repita o pensamento, a emoção e o sentir, para já não falar das palavras. Afinal, sou apenas um e tenho uma única coisa para dizer, agora e sempre – isto. Mais nada. O resto é o meu nome ao contrário – Etraud Seriac – e uma longa história para contar.
Viver numa terra pequena, assim como a ilha da Madeira, rodeada de pedra, de mar e infinito, exige um constante e penoso trabalho de terraplanagem da memória e subsequente reconstituição da sua orografia original, porque todos os cantos e recantos estão impregnados do ontem e de quem ontem fomos. Se, ao cabo dos acontecimentos, não conseguimos refazer a paisagem do nosso maravilhoso e inexplicável big bang, então ficamos com pouco para ser e muito para morrer, muito para morrer.
Isto, realmente, soa-me a coisa já dita… raios me partam… eu já escrevi uma crónica igual a esta… sou caótico, sabem… perco-me no meio dos papéis e das ideias… esqueço-me do que digo, quando digo, como digo… nunca sei que palavra ficou para trás… nem onde ficou…
Aqui, na ilha, não há espaço para a ausência nem para o abandono e o tempo é pesado e custa muita sabedoria a passar. A marca d’água da dor e da alegria é visível mesmo sem as pôr contra a luz da consciência – a mais luminosa de todas as luzes – e há sempre uma voz inesperada que nos diz no meio do nada:
– Foi aqui que nasceste.
E depois reforça:
– Nunca te esqueças disso.
Digo-vos: É preciso muito mundo, mundo sem fim, ilimitado, muita viagem também, muita distância, muito deserto e muita solidão para que o indivíduo permaneça livre e despojado, ou seja, disponível para se redescobrir a cada regresso e voltar a ser perdidamente o que é, o que sempre foi, o que sempre será.
Caraças, isto são coisas repetidas… palavras reditas… a mesma conversa de sempre…
Eu cruzei oceanos de tempo sem Deus e sem dinheiro e palmilhei um longo percurso sem os ter sequer por companheiros fictícios. Para mim, é tão difícil acreditar em Deus como não acreditar no dinheiro, porque os sinto fúteis e inúteis, mesmo quando, derreado pelo caráter utilitário da vida, necessito deles, mais ou menos assim:
– Ai, meu Deus, o que será de mim sem o dinheiro?!
Ou, então, ao contrário:
– Ai, meu Deus, o que será de mim se ganho o euromilhões?!
É sempre a mesma coisa… nada de novo… tudo igual… uma crónica repetida… um monte de palavras para expressar o vazio… outra vez o vazio…
A estrela que alumia o meu caminho, porém, continua a brilhar e estou feliz por isso. Nunca deixei de ver a sua luz, sabem, embora às vezes me pareça que brota de uma fonte morta há milhões de anos, tal como a de muitas estrelas no céu do mundo, essas que nos esmagam noite após noite com a magia cintilante da sua inexistência.
Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas