A boca fala do que transborda o coração
Ex abundantia cordis loquitur os”. A boca fala do que o coração está cheio, costuma dizer-se. Permitam-me uma tradução mais poética, talvez: a boca fala do que transborda o coração.
Uma arca pode estar cheia e apenas guardar as coisas. Para que as palavras cheguem aos outros, não basta fazer do coração uma arca de coisas mais ou menos boas, é preciso que ele transborde, até não poder mais comportar todo este tesouro de humanidade que cada um carrega em si.
A grande questão é a opção fundamental que nos leva a escolher umas palavras e não outras. Na era das redes sociais, é fácil procurar o impacto imediato, os likes, os elogios de quem concorda connosco. E tudo bem. Mas lembro-me do que o Papa escreveu na sua última encíclica, ‘Fratelli Tutiti’, e ponho a mão na consciência: “Os movimentos digitais de ódio e destruição não constituem – como alguns pretendem fazer crer – uma ótima forma de mútua ajuda, mas meras associações contra um inimigo”. Ter muita gente a concordar comigo pode não ser, necessariamente, uma coisa boa. Em última instância, posso apenas estar a fazer parte de um exército movido pelo mal querer…
É fácil que alguém concorde connosco quando falamos mal de algo que essa pessoa detesta. O sentido crítico desaparece imediatamente, por trás da emoção instantânea, voando de polémica em polémica. Problema: nenhuma sociedade movida pelo ódio pode construir algo de bom, por muitas que sejam as forças mobilizadas nessa luta.
A este respeito, recordo também o momento em Santo Agostinho, bispo de Hipona, apareceu na tomada de posse de um presidente dos EUA, esta semana: um povo é um conjunto de pessoas unidas "pelos objetos comuns do seu amor". O conceito, apesar de nascido há cerca de 15 séculos, continua a ser revolucionário: o amor como critério político e social. Só aquilo que nos transbordar do amor do nosso coração, como comunidade, merece a nossa luta, os nossos recursos, as nossas palavras, para voltar ao início desta crónica.
Não vivemos tempos fáceis: há muito medo, a sombra da doença, as mortes, a crise económica e social. É fácil que tudo isto encha o nosso coração e transborde em fel. Nunca é tarde, no entanto, para recordar os “objetos comuns” do nosso amor, enquanto sociedade, os valores que nos trouxeram até aqui, a solidariedade, a capacidade de sacrifício, a dedicação ao outro, o reconhecimento incondicional da dignidade humana. Porque, para merecer o nosso respeito, o próximo não tem de ser nada mais do que aquilo que é.
Para que as palavras cheguem aos outros, não basta fazer do coração uma arca de coisas mais ou menos boas, é preciso que ele transborde.
A nós, desde este exílio que cada um está a viver na sua própria casa (obrigado pela frase, Verônica Ferriani), cabe-nos aprender a fazer a viagem que o mestre Gilberto Gil propunha: do aprender a ser só para o aprender a só ser. Sem mais nem mas.