Jornal Madeira

Apronta-te! Vamos a casa da avó!

- Sílvia Mata silviamari­amata@gmail.com

Anos 80. É Domingo. Sou uma adolescent­e e estou rabugenta. Ninguém pode falar comigo, que eu salto em cima. Deslarga-me da mão! A tia Elvira já me disse “aí vem o vento”, só porque eu saí do quarto e gritei irada “pouco barulho”. Estou a estudar! Tenho um ponto de Inglês amanhã, e o Peitaças, com o seu ar de aristocrat­a, sempre de fato e gravata, não é para brincadeir­as! Vocês conhecem lá o Peitaças! Vai ser difícil! Não quero ter Reduzido nem Médio! Quero ter Elevado! Fecho a porta com força, quando quero fechar devagar! E aquelas duas, minha mãe e a tia Elvira não se calam! Fazem da rebendita! E daqui a nada, chega Maria do Ó, velha e surda como é, ainda vai fazer mais barulho! E eu sou o vento! E eu sou a impertinen­te! Que é Domingo! Que ninguém é bicho! Que estão conversand­o baixinho um belisquinh­o! E eu? Muito mal injusta esta vida! Ninguém me compreende! E daqui a pouco é para ir a casa da avó Belmira e o Art Sullivan vai cantar na televisão “C`est Dimanche je la vois…” e vai dar “Fame” let`s going living for ever e eu não vou ver nada! O pai cá pode ouvir “A semana Passada Aconteceu” na telefonia, enquanto limpa e engraxa os nossos sapatos do caminho! Só eu não tenho direitos! Só tenho obrigações! Um dia, vocês vão ver como é!

Ilusões! Que saudades dessas vozes, desses cheiros, desses sabores! Era Domingo. Cheirava a Domingo. Ouvia-se Domingo! Sabia a Domingo! Sentia-se Domingo!

Depois do almoço. Partimos. A pé, já se sabe! E pelo caminho, meu pai assobiava baixinho e encantava-se com tudo, com a música dos pássaros, com uma pedra que ainda estava ali desde que ele tinha a minha idade; com o tronco descaído daquela árvore onde ele se sentara a gozar a sombra; com aquela flor que havia de nascer logo acolá naquele bardo!

Chegámos. Lá está o avô ao balcão. Tem a telefonia ao ouvido. Pedimos a bênção um a um. Deus Nosso Senhor te abençoe! E não fala mais!

Os primos, os mais novos, ficavam felizes com a nossa chegada. Olhos de luz! Cabritinho­s à solta! E um deles, que grande novidade e alegria, recebera de presente da tia da América, um rádio e um microfone, uma maquineta sofisticad­a para a altura. E fazia-nos entrevista­s, à moda de um jornalista. E depois exibia a gravação!

E a avó recebia-nos no terreiro de braços abertos a rir muito e a limpar as mãos ao avental! Lá estavam as primas todas e os primos e as tias e os tios. Já lá estava o tio que era nosso vizinho e as primas! Éramos sempre os últimos a caminhar de casa! Minha mãe era uma encrenca! Inventava sempre coisas para fazer à última da hora! E aquilo era tanta gente, tudo no terreiro da avó que cheirava a pão de casa e a bolo do caco quente acabado de fazer!

E recordo as ovelhas no curral do avô, as galinhas esgravatan­do à solta nos poios; as ameixas; as peras e os peros, as castanhas, os araçais! E sei o lugar onde cada árvore nascia e sei o cheiro e sei a macieza e a acidez do gosto e sei o porte altivo de cada uma.

E mais sei e desenterro de dentro de mim a música das vozes, rindo e contando histórias preguiçosa­s de domingo, o meu encanto, porque eram histórias de verdade! E eu ria deliciada sem perceber onde morava dentro de mim aquela paixão do gostar daquelas inutilidad­es.

E à noitinha, na quentura da roda da mesa, bebíamos ávidos uma canja como nunca mais encontrei sabor em lado nenhum. O sereno lá fora espreitava pelo postigo, porque havia um bafo quente de muita gente ali.

E noite cerrada, pequenas vocês que adeus, voltávamos a casa a pé felizes e contentes, mais o tio nosso vizinho, a tia e as primas. Aquilo era agora um ror de gente pelo caminho abaixo, uma folia de vozes e era tão bom! Seguíamos pisando o riozinho de luz que a Lua desenhava de propósito para a gente! Não era preciso o olho de boi! Ela, lá no alto, imponente e majestosa, fazia-nos companhia! Não é preciso ter medo! Vamos à conta de Deus Nosso Senhor!

Sílvia Mata escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas

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