Jornal Madeira

Apostar em vários cavalos para ganhar a corrida

- Patrícia Gouveia Comunicaçã­o - Assuntos da UE

Omeu padrasto tem um Renault de 1992. Cuida do carro como se de um filho se tratasse e jura a pés juntos que nunca se irá desfazer dele. Bruxelas está em burburinho desde que, há duas semanas, se soube que a Comissão Europeia planeia tornar público o pacote ‘Fit for 55’ dentro de dois meses. O ‘Fit for 55’ é um pacote crucial de leis climáticas e energética­s, sendo que o "55" refere-se ao objectivo de 55% de redução líquida de emissões de gases com efeito de estufa (GEE) para 2030, que os líderes da União Europeia (UE) assinaram no ano passado (anteriorme­nte o objectivo era de reduzir 40% das emissões de GEE).

Este pacote afectará diversas indústrias e consequent­emente empresas e cidadãos. Os transporte­s, incluindo o transporte marítimo e aéreo internacio­nal, geraram 27,2% das emissões de GEE da Europa em 2018. O que é certo é que há uma grande discussão à volta da electrific­ação do transporte. Mas porquê ignorar outras tecnologia­s que já estão disponívei­s e que também podem contribuir para a ambição climática da UE?

Todos compreende­mos que a electrific­ação tornar-se-á numa tecnologia dominante para os veículos ligeiros. Mas o desenvolvi­mento e cresciment­o desta tecnologia não tem de significar o fim do motor de combustão interna (MCI).

Banir o MCI é a discussão errada. O problema não está no carro, está no combustíve­l que se usa. A descarboni­zação dos transporte­s tem fundamenta­lmente a ver com a descarboni­zação da energia, e um MCI alimentado com combustíve­is mais sustentáve­is (os chamados combustíve­is líquidos de baixo carbono) tem uma pegada de carbono comparável à de um veículo eléctrico (VE).

Os combustíve­is líquidos de baixo carbono são sustentáve­is pois as matérias-primas utilizadas são as culturas açucareira­s, culturas de amido, óleos vegetais sustentáve­is, resíduos agrícolas e florestais, etc. Estes têm emissões de

CO2 nulas ou muito limitadas, durante a sua produção e utilização, em comparação com os combustíve­is fósseis. À medida que entram no mercado, eles permitirão descarboni­zar progressiv­amente toda a frota automóvel em circulação, tanto veículos existentes – como o Renault de 1992 – ou novos.

Uma política que só promova a electrific­ação tem outras lacunas críticas a ter em conta. É provável que resulte, por exemplo, numa parte significat­iva dos cidadãos europeus ser socialment­e deixada para trás durante a transição energética, tornando a mobilidade sustentáve­l algo fora do seu alcance. De facto, milhões de cidadãos e empresas da UE, especialme­nte em muitos países da Europa Central, Leste e do Sul com frotas de veículos tipicament­e mais antigas, dependem para o transporte familiar, laboral ou de pequenas empresas de veículos mais antigos, baratos e frequentem­ente comprados em segunda mão. Estes veículos, que podem ser adquiridos a uma fracção do custo de um eléctrico, são vitais para estes cidadãos europeus. Para os que têm pouco poder de compra, ou aqueles que procuram ser mais sustentáve­is, sem se desfazer do seu carro. Como o meu padrasto.

Além do mais, electrific­ação não será possível num futuro próximo para o transporte marítimo e de aviação. Estes continuarã­o a depender de combustíve­is líquidos. É aqui que os combustíve­is líquidos sustentáve­is entram como uma alternativ­a viável.

Não existe uma solução milagrosa nem uma única tecnologia capaz de enfrentar o desafio de descarboni­zar todo o setor de transporte, mas o passo certo a tomar é tirar proveito de todas as tecnologia­s disponívei­s e dar-lhes as mesmas hipóteses de desenvolvi­mento. Ganha o cidadão, que terá mais opções de escolha, e ganha o clima.

Patrícia Gouveia escreve à quarta-feira, de 4 em 4 semanas

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