Jornal Madeira

Relatório de Verão

- DO FIM AO INFINITO Duarte Caires duartevelo­sacaires@gmail.com

De repente, começou a ventar. Vento, vento, vento. De manhã à noite, a toda a hora. Vento. E nuvens também. Muitas nuvens. O sol quase sempre encoberto e as constelaçõ­es ocultas. Bem feitas as contas, num total de quinze dias, apenas cinco foram meteorolog­icamente bons. E, mesmo assim, dois deles não prestaram para fazer praia. Por causa do vento, claro.

Eu digo:

– O Porto Santo tem uma personalid­ade forte.

A Pat faz-se desentendi­da:

– É tudo o que se quer num destino de verão.

Bem, no primeiro dia fomos dar um passeio na praia, já na parte da tarde, seguido de mergulho e banho de sol. Excelente! No segundo, fizemos a mesma coisa, mas com mais delongas. Tudo perfeito – os passos na areia a caminho da Calheta, o recorte das Desertas no horizonte, o bonito e espesso perfil da costa norte da Madeira ao fundo, o sol a pique, o vinho branco gelado, o rumor da esplanada ainda com pouca gente, o mar sem ondas, a toalha estendida.

Eu venho a correr e digo:

– A água está ótima!

Pareço um náufrago do tempo antigo, com o cabelo comprido e a barba hirsuta. A Pat recomenda-me protetor solar, mas eu recuso. Gosto de enfrentar as coisas ao natural, seja lá o que for. É uma mania que tenho.

– Quero lá saber de protetor.

À noite, porém, percebo que apanhei um escaldão. Estou vermelho da cabeça aos pés, um vermelho vivo e intenso, em degradê pelo corpo abaixo. Suplico por cremes refrescant­es, rogo por pomadas hidratante­s. Durmo mal. Tenho o corpo a arder, a ferver. Ao natural, com certeza.

– Como tu gostas! – Diz ela.

E eu assim mansinho:

– Hoje não vou à praia. Tenho de dar descanso à pele, caramba. Além disso, vamos ficar aqui quinze dias. Não é preciso gastar o sol todo de uma vez.

No dia seguinte, contudo, vieram as nuvens e o vento. O mar pôs-se cheio de ondas e praia tornou-se um lugar frio e desagradáv­el. E assim continuou dia após dia. Tivemos de preencher o tempo com outras atividades, como, por exemplo, três ou quatro voltas à ilha de carro, ora por um lado, ora por outro, parando aqui e ali para ver as vistas e os lugares do costume; duas idas ao Pico Ana Ferreira com o propósito de entrar numa gruta de onde se tiram fotografia­s panorâmica­s espetacula­res, mas que não encontrámo­s; algumas tardes inteiras de sono em casa, a casa que alugámos e sobre a qual passam todos os aviões que aterram na ilha, porque fica mesmo no enfiamento do aeroporto; umas quantas idas à Vila Baleira – palavra que, entre outros significad­os, quer dizer ‘vazia’ – para tomar café e ver as lojas; uma tentativa fracassada para fazer um churrasco no quintal, pois não consegui acender o carvão – o que é uma coisa incrível, consideran­do que sou das Zonas Altas de Santo António e além disso vivi uns anos em África; várias tentativas igualmente falhadas para iniciar a leitura de “As Novas Mil e Uma Noites”, de Robert Louis Stevenson, a maior parte das quais terminou sem sequer tocar no livro. Pelo meio, fomos duas vezes ao supermerca­do grande e muitas ao supermerca­do pequeno ao pé de casa e também comemos em dez restaurant­es distintos, um dos quais estava a abarrotar de gente de várias nacionalid­ades como se não houvesse pandemia.

Apesar de tudo, nunca perdemos a esperança do verão e descemos à praia todos os dias à sua procura. Houve até uma vez em que me entusiasme­i e decidi furar de cabeça as ondas como se fosse um miúdo e senti-me, de facto, feliz e alegre e leve como um miúdo. No dia seguinte, porém, acordei com fortes dores no pescoço e as dores diziam assim:

– Estás velho, meu caro! Estás velho!

Mas eu cá gosto de pensar que, aparte os mergulhos no mar, estas dores têm muito a ver com os mergulhos na cama. Afinal de contas, apesar da minha idade, eu e a Pat estamos em lua-de-mel… E lá fora está vento…

Apesar de tudo, nunca perdemos a esperança do verão e descemos à praia todos os dias à sua procura.

Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas

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