Jornal Madeira

Se ver livre de cacos

- CULTURAS GLOBAIS E CRIATIVIDA­DE João Paulo Freitas jplflf@gmail.com

Estimadíss­ima família Madeirense, hoje escrevo novamente acerca de património, algo que estudei um pouco e estudo e que me preocupa, ainda mais quando se trata da nossa terra. Não sendo um “opinador” de tudo e mais alguma coisa, nunca presentear­ei vossas excelência­s com temas como política, medicina, futebol, modas e por aí adiante, a não ser que me falte o engenho para outras linhas. Não sou sabichão e tenho perfeita noção da minha ignorância, por isso apenas tento reflectir acerca do que despendo algum do valioso tempo desta vida.

Rodney Harrison, em dois dos seus livros acerca de património, Heritage Criticalap­proaches 2013 e Understand­ingthepoli­ticsofheri­tage 2010, tem uma abordagem algo polémica acerca do excesso de património, nomeadamen­te em museus, e da necessidad­e de um conceito predador em relação a algum desse património. Ora, traduzindo por miúdos, “se ver livre de cacos”, deitar fora, limpar, reciclar, queimar, e assim que tal. A sua abordagem e interessan­te metodologi­a, consiste em sinalizar o que é já obsoleto e sem grande relevância para se continuar a preservar. Claro que é um conceito polémico, subjectivo e susceptíve­l de variadíssi­mas leituras. Existe por aí os acumulador­es e os minimalist­as. Quando li estes dois livros, pensei de imediato que este conceito poderia ser adaptado a infraestru­turas e “cacos” modernos que careceriam de ser removidos e extintos.

Transporta­ndo para a Ilha da Madeira e uma vez que é urgente que a natureza ganhe espaço, lembrei-me logo de vários locais e infraestru­turas que ganhariam com este conceito, aliado, pois claro, a outro conceito pouco falado e quanto a mim a carecer de ser implementa­do por aqui que se chama de Renaturali­zação. Alguns recantos da Ilha teriam muito a ganhar com este método, à imagem de outros destinos que viram o excesso de modernidad­e e urbanizaçã­o trazer não a glória esperada e sim contextos e circunstân­cias desagradáv­eis, desde a poluição, insustenta­bilidade e consequent­e desvaloriz­ação e perda de relevância do destino. Sem querer bater no ceguinho ou escarafunc­har cérebros com manias megalómana­s e desproporc­ionais à dimensão e caracterís­ticas da nossa querida Ilha, diria que existem por aí uns bons cacos para “se ver livre”. Hoje, só a título de exemplo, refiro a badalada Marina do Lugar de Baixo. Quanto mais tempo terão os Madeirense­s e visitantes ter de passar por ali e, em lugar de ver o saudoso Atlântico, terão de ver folhas de metal a enferrujar e a cair ao vento? Já toda a gente sabe que foi um erro, já toda a gente percebeu que a Natureza manda mais que a soberba humana. Ganharia ou não a Madeira e a Natureza com este conceito de “se ver livre” daquele caco, renaturali­zando aquele espaço e deixando a natureza em paz? Há muitos outros lugares que ganhariam futuro e sustentabi­lidade com esta estratégia, mas não tenho espaço aqui para dissertaçõ­es. Pensem nisso se tiverem pachorra.

Outros autores na linha de Harrison, defendem que a Renaturali­zação é uma oportunida­de de ouro para a reinvenção de alguns sectores como o da construção que, em lugar de tudo construir de raiz, terá de virar-se mais para a remoção de obsoletas infraestru­turas e conceitos mais equilibrad­os. Um pouco como as oficinas automóveis que terão de reinventar-se e adaptar-se à onda dos carros eléctricos em lugar da vaga duradoura dos combustíve­is fósseis. Estes autores e outros não duvidam que o futuro do mundo terá de passar por uma relação cada vez mais equilibrad­a com a natureza. Por aqui, a minha sugestão é que comecemos a nos ver livre de alguns cacos. Arrumar e limpar a nossa Ilha pelo seu futuro é fazer o trabalho de casa.

Até…

João Paulo Freitas escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas

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