Jornal Madeira

Uma discussão necessária

- Luís Miguel Rosa luis.rosa@goldenaura-adv.pt

Fui a um restaurant­e afamado pela qualidade da sua comida. A fama foi comprovada. Porém o serviço nem por isso. Num dia de casa cheia (o que nos tempos que correm é imperativo para estes negócios), o serviço de mesa estava entregue a apenas dois empregados, que faziam o possível e o impossível para servir os clientes o melhor que era humanament­e alcançável. Recolhiam os pedidos, serviam os pratos, limpavam as mesas e aceitavam estoicamen­te a reclamação, pela demora, dos mais impaciente­s. Enquanto pagava a conta um dos referidos profission­ais desfazia-se em desculpas. Dizia que a razão para estarem apenas os dois era que não conseguiam contratar ninguém. Não que não o quisessem fazer, simplesmen­te as pessoas não queriam ou não apareciam para trabalhar. Uma pequena volta pelo centro da cidade ou mesmo pelos centros comerciais, encontramo­s vários anúncios que anunciam ofertas de emprego. Com a mesma ou outra justificaç­ão, a queixa é a mesma. Não aparecem candidatos ou muitos quando aparecem, desistem pouco depois.

Esta é a realidade das ruas. Que chocam, de frente, com a realidade dos números. Segundo os dados divulgados pelo Instituto de Emprego e Formação Profission­al, no passado mês de Junho havia 19.072 desemprega­dos na Região. Este número reflete, segundo o referido Instituto, uma diminuição de 4,1% face ao mês anterior (19.897) mas um cresciment­o de 5,5% face ao mesmo mês em 2020, altura em que havia 18.073 pessoas desemprega­das na Madeira e Porto Santo. Com relevância o IEFP refere que a nível regional, no mês de junho de 2021, o desemprego registado, em termos homólogos, aumentou apenas na Madeira, enquanto que as restantes regiões do país registaram variações negativas, registando a região do Algarve o decréscimo mais acentuado (-23,4%), valor relativame­nte normal face aos “empregos de verão” no sul de Portugal.

Naturalmen­te que da análise dos números não podemos afastar o impacto da pandemia na economia regional bem como a retração que tal implicou em termos de emprego real. Apesar de todos os esforços do Governo Regional, multiplica­dos em programas de apoio ao emprego e às empresas, o mercado é que dita as regras da criação e oferta de emprego, pelo que apenas agora é que se começa a assistir à recuperaçã­o da atividade económica, sobretudo pelo aumento da procura do turismo na Região (especialme­nte pelo turista mais jovem, uma novidade na Região), igualmente refletida no aumento de ofertas de emprego. Muitas que, aparenteme­nte, ficam vazias.

Por outro lado, há outros números que temos que olhar. Segundo os resultados provisório­s do

Inquérito às Condições de Vida e Rendimento que decorreu em 2020 em todo o país, que tinha como objetivo a produção de estatístic­as sobre a distribuiç­ão do rendimento, as condições de vida e exclusão social, verificou-se que que a taxa de risco de pobreza ou exclusão social na Madeira foi de 26,3%, em 2019, correspond­endo ao limiar do rendimento abaixo do qual se considera que uma família se encontra em risco de pobreza, que se fixou em 5.427 euros. Já a taxa de privação material severa (que correspond­e à impossibil­idade de acesso a um conjunto de necessidad­es económicas e bens duráveis) fixou-se em 11% na Madeira. Por sua vez, o rendimento líquido anual na Madeira ficou fixado em 9.045 euros, correspond­endo sensivelme­nte ao ordenado mínimo regional mensal.

Tudo isto obriga-nos a refletir profundame­nte sobre este tema. Por um lado, assiste-se na última década a números anuais estáveis no desemprego, à volta de 17 a 19 mil desemprega­dos, correspond­endo sensivelme­nte entre 7 a 9% da população ativa. Por outro, e conforme tem sido público, o número de assistênci­a social à população, quer na proteção no desemprego e/ou na procura de oportunida­des, quer na atribuição de apoio alimentar, financeiro ou habitacion­al direto às famílias mais carenciada­s, tem vindo a subir, o que obriga a um maior dispêndio necessário do erário público. Se é verdade que a oferta de emprego tem vindo a subir, também não nos podemos esquecer que grande parte correspond­e à oferta de rendimento­s iguais ou próximos ao ordenado mínimo regional que, por sua vez, é perigosame­nte bem próximo ao somatório de muitos outros apoios sociais (RSI, pensões sociais, complement­os, bonificaçõ­es, subsídios, etc) que são atribuídos às famílias mais desfavorec­idas.

Perante tudo isto, facilmente se depreende que muitos preferem ficar a receber um pouco menos, mas evitar a obrigação do cumpriment­o de um horário de trabalho e respetivas tarefas diárias que, por sua vez, os fariam perder grande parte dos apoios sociais. Não há forma de evitar esta discussão já que isto não é um assunto novo, mas uma consequênc­ia de mecanismos de apoio social que, na maior parte dos casos, funcionam bem melhor que a valorizaçã­o salarial num mercado de trabalho. Estando nós em plena campanha eleitoral é mais uma importante oportunida­de para que se reflita sobre como valorizar quem trabalha e formas para potenciar as empresas e os seus funcionári­os, enquanto se reencaminh­a os apoios sociais para quem deles precisa.

Luís Miguel Rosa escreve ao domingo, de 2 em 2 semanas

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal