Jornal Madeira

Vindimas

- CONTOS INSULARADO­S Sandra Cardoso

Habituouse a fechar os olhos e a ficar no escuro, por causa das cataratas. Agora, apesar de já as ter tratado, ficou-lhe a mania. Os outros achavam que estava numa madorna, afinal o pai dele também tinha a manha de dormir sentado, fosse à mesa de jantar ou noutro lugar, com a mesma idade. Mas não, estava a enxergar a vida que já não tinha, que lhe aparecia vívida como se fosse agora. Dizem que quando se perde um sentido apuram-se outros, tivesse apurado antes a memória à conta das cataratas. A ideia fez-lhe dar um risinho e quem viu achou que estava a sonhar.

Mas não. Estava no lagar, de calções e botas de água, de tronco nu cheio de mosto, a pisar o vinho, que havia de acartar sozinho às costas e meter nas pipas e que acabaria também por beber em demasia. Antes estivera nas vindimas. Como era bonita esta altura, em que comiam todos, à volta da toalha de pano já gasta, debaixo da figueira da beira-mar. Lamenta a pressa que impunha nesses repastos de saudade, sempre a correr porque o trabalho não esperava e sem perceber que esses dias não eram o fim do verão que vai e volta sempre. Eram mesmo a mocidade que não volta mais.

Era agora mais novo e estava no sótão da casa da tia, para onde foi viver depois de perder a mãe e o pai não saber o que fazer aos seus filhos órfãos. Era lá que dormia e na altura passou a ter medo do escuro e da solidão daquela casa sem irmãos. Ouvia os morganhos toda a noite e receava um ataque se fechasse os olhos. Então mantinha os olhos abertos no escuro da noite o mais que podia, até ser vencido pelo cansaço. Dormia pouco, tinha olheiras e a tia dava-lhe ralhetes, que parecia tuberculos­o. Quem diria que aquela criança franzina viria a apreciar o escuro como meio de clarividên­cia e sobrevivên­cia.

Alguém chama para o almoço. Mantém os olhos fechados, temente da luz. -Está dormindo?

-Não, estou vivendo. E ainda queria passar ali debaixo da figueira da beira-mar para ver a minha mulher e dizer-lhe que nunca esteve tão bonita, com a toalha ao regaço, a dar de comer aos filhos.

- Ó senhor, a sua melhor já morreu, respondem-lhe, encolhendo os ombros. O juizinho…

-Sim…o que é o almoço?

Estava no lagar, de calções e botas de água, de tronco nu cheio de mosto, a pisar o vinho, que havia de acartar sozinho às costas e meter nas pipas.

Sandra Cardoso escreve ao domingo, de 2 em 2 semanas

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