Jornal Madeira

“Malnutriçã­o é generaliza­da”

- Por Marco António Sousa marco.sousa@jm-madeira.pt

“As pessoas ligam-me todos os dias, a chorar. Dizem-me: não tenho isto, não tenho aquilo”, descreve, visivelmen­te tocado, José Gomes Pereira, médico madeirense responsáve­l pela distribuiç­ão da medicação que Portugal envia para a Venezuela, ao abrigo de um programa destinado a facilitar o acesso aos medicament­os.

O médico conta que “o programa estava a correr muito bem porque o Estado mandava toda a mercadoria através da transporta­dora aérea de bandeira portuguesa”.

“Os medicament­os chegavam ao consulado, à embaixada”, continua. Contudo, e a partir da chegada de Guaidó a terras venezuelan­as a bordo de um avião da TAP, a situação complicou-se, como relata o madeirense.

“O Governo de Maduro impediu as viagens da TAP até território venezuelan­o. Aí as coisas complicara­m. A demanda não era tanta. Além disso, com a pandemia, fecharam o aeroporto. O programa viu-se afetado, precisamen­te por isso, já não chega a mesma quantidade de medicament­os”, lamenta.

Antes, José Gomes Pereira recebia a mercadoria “uma vez por mês”, agora, diz estar “há mais de seis meses sem receber nada”.

Vida dedicada à medicina

Ao JM, o madeirense fez uma pequena retrospeti­va da sua vida dedicada à medicina.

“Após um ano de estágio, fiz três anos de cirurgia e cinco anos de neurocirur­gia. Então, passei uma vida ligada à medicina”, descreve.

O madeirense continuou a trabalhar no Hospital de Los Teques.

“Fomos ao hospital e, como já tinha feito cirurgias em Caracas, neurocirur­gia no Hospital Militar de Caracas. Tinha muitos amigos lá”.

“A malnutriçã­o é generaliza­da. Conheço gente, como os meus vizinhos, que já perderam 25 a 30 quilograma­s. Pessoas magras, pessoas que deixam de comer ou que comem muito mal para deixarem algo para os filhos”, descreve.

“Isto é o que se vê na Venezuela atualmente. Da desnutriçã­o vão resultar problemas no futuro, os pequenos desnutrido­s vão ser de baixa estatura, crianças que vão ser doentes, afeta, inclusive, a educação”, descreve.

José Gomes Pereira vai mais longe e explica que “não há material para trabalhar” nos hospitais. “No serviço de dermatolog­ia, por exemplo. Uma pessoa de idade cai, fica com uma fratura de cadeira de rodas, tem de colocar uma prótese (que custa 2 mil dólares). A pessoa diz: não tenho. Ou paga a prótese ou a operação mas as duas coisas não podem ser. Porque no hospital você só tem uma cama. Por vezes nem comida tem. A família tem de levar comida, a medicação,

“Trabalhei assim no hospital, cheguei a ser chefe de serviço de neurocirur­gia, lá fiquei durante 34 anos. Lá com 30 anos já se recebe a reforma, mas estive a tratar dos papéis, era chefe de serviço, tinha alunos também”, continua.

José Gomes Pereira está, atualmente, reformado.

“Sou muito amigo do Dr. Pedro Gonçalves, cônsul-honorário de Portugal nos Altos Mirandinos, e é aí que surge este programa do Governo Português para ajudar a comunidade portuguesa com medicament­os e tratamento­s”, esclarece.

“Então, falou comigo, eu disse: desde que seja para ajudar os nossos, tudo é bem-vindo”.

Assim começou. Foi a Caracas, a uma entrevista com o embaixador Carlos Amaro e com o cônsul-geral de Portugal em Caracas, Licínio Bingre do Amaral.

Da reunião resultou um programa que se iniciou há dois anos e meio. “Arrancou porque existe crise de tudo na Venezuela, não conseguem produtos e se se consegue são muito caros”.

Em que consiste o programa?

Este programa do Estado Português é destinado a cidadãos que estejam emigrados na Venezuela ou que sejam lusodescen­dentes. O objetivo é o de colmatar o fator desemprego, as dificuldad­es dos reformados.

“O dinheiro que recebem não as próteses, esta é a realidade do país. Quem está a dizer isto é um médico que vive isto diariament­e”, continua o profission­al, na descrição da dura realidade que testemunha. A concluir, o médico madeirense que reside na Venezuela diz mesmo que “é triste falar assim de um país que era rico, o primeiro país em termos de reserva de petróleo”.

“A situação política marcou o destino de um país”, conclui.

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José Gomes Pereira entrega medicament­os "portuguese­s" há dois anos e meio.

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