“Malnutrição é generalizada”
“As pessoas ligam-me todos os dias, a chorar. Dizem-me: não tenho isto, não tenho aquilo”, descreve, visivelmente tocado, José Gomes Pereira, médico madeirense responsável pela distribuição da medicação que Portugal envia para a Venezuela, ao abrigo de um programa destinado a facilitar o acesso aos medicamentos.
O médico conta que “o programa estava a correr muito bem porque o Estado mandava toda a mercadoria através da transportadora aérea de bandeira portuguesa”.
“Os medicamentos chegavam ao consulado, à embaixada”, continua. Contudo, e a partir da chegada de Guaidó a terras venezuelanas a bordo de um avião da TAP, a situação complicou-se, como relata o madeirense.
“O Governo de Maduro impediu as viagens da TAP até território venezuelano. Aí as coisas complicaram. A demanda não era tanta. Além disso, com a pandemia, fecharam o aeroporto. O programa viu-se afetado, precisamente por isso, já não chega a mesma quantidade de medicamentos”, lamenta.
Antes, José Gomes Pereira recebia a mercadoria “uma vez por mês”, agora, diz estar “há mais de seis meses sem receber nada”.
Vida dedicada à medicina
Ao JM, o madeirense fez uma pequena retrospetiva da sua vida dedicada à medicina.
“Após um ano de estágio, fiz três anos de cirurgia e cinco anos de neurocirurgia. Então, passei uma vida ligada à medicina”, descreve.
O madeirense continuou a trabalhar no Hospital de Los Teques.
“Fomos ao hospital e, como já tinha feito cirurgias em Caracas, neurocirurgia no Hospital Militar de Caracas. Tinha muitos amigos lá”.
“A malnutrição é generalizada. Conheço gente, como os meus vizinhos, que já perderam 25 a 30 quilogramas. Pessoas magras, pessoas que deixam de comer ou que comem muito mal para deixarem algo para os filhos”, descreve.
“Isto é o que se vê na Venezuela atualmente. Da desnutrição vão resultar problemas no futuro, os pequenos desnutridos vão ser de baixa estatura, crianças que vão ser doentes, afeta, inclusive, a educação”, descreve.
José Gomes Pereira vai mais longe e explica que “não há material para trabalhar” nos hospitais. “No serviço de dermatologia, por exemplo. Uma pessoa de idade cai, fica com uma fratura de cadeira de rodas, tem de colocar uma prótese (que custa 2 mil dólares). A pessoa diz: não tenho. Ou paga a prótese ou a operação mas as duas coisas não podem ser. Porque no hospital você só tem uma cama. Por vezes nem comida tem. A família tem de levar comida, a medicação,
“Trabalhei assim no hospital, cheguei a ser chefe de serviço de neurocirurgia, lá fiquei durante 34 anos. Lá com 30 anos já se recebe a reforma, mas estive a tratar dos papéis, era chefe de serviço, tinha alunos também”, continua.
José Gomes Pereira está, atualmente, reformado.
“Sou muito amigo do Dr. Pedro Gonçalves, cônsul-honorário de Portugal nos Altos Mirandinos, e é aí que surge este programa do Governo Português para ajudar a comunidade portuguesa com medicamentos e tratamentos”, esclarece.
“Então, falou comigo, eu disse: desde que seja para ajudar os nossos, tudo é bem-vindo”.
Assim começou. Foi a Caracas, a uma entrevista com o embaixador Carlos Amaro e com o cônsul-geral de Portugal em Caracas, Licínio Bingre do Amaral.
Da reunião resultou um programa que se iniciou há dois anos e meio. “Arrancou porque existe crise de tudo na Venezuela, não conseguem produtos e se se consegue são muito caros”.
Em que consiste o programa?
Este programa do Estado Português é destinado a cidadãos que estejam emigrados na Venezuela ou que sejam lusodescendentes. O objetivo é o de colmatar o fator desemprego, as dificuldades dos reformados.
“O dinheiro que recebem não as próteses, esta é a realidade do país. Quem está a dizer isto é um médico que vive isto diariamente”, continua o profissional, na descrição da dura realidade que testemunha. A concluir, o médico madeirense que reside na Venezuela diz mesmo que “é triste falar assim de um país que era rico, o primeiro país em termos de reserva de petróleo”.
“A situação política marcou o destino de um país”, conclui.