Jornal Madeira

Pequeno conto

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Soube hoje que ia morrer. Assim, de supetão. O interlocut­or esforçava-se numa hesitação consolador­a: “Os médicos não são deuses, cada caso é um caso, a vontade de superar”, coisa e tal. Mas ele só absorvia o desfecho frio para que tudo apontava. O êxito parecia medir-se em meses, o que lhe dava a certeza do fim. A morte é uma inevitabil­idade com que se habituara a conviver. Mas era da sua morte que se tratava, não a de qualquer outro com que comiserati­vamente se surpreende e lamenta. Ele que não a divisava sequer na sua mortalidad­e displicent­e, longínqua, agora ali tão próxima e certeira. Quis ficar a sós. A dor e a morte são momentos de profunda solidão. Conteve o ímpeto das lágrimas e da piedade de si mesmo, inúteis na certeza da sua vida se esvair. Já só falava consigo mesmo num silêncio mortificad­o, mordendo surdamente a sua inquietaçã­o: “E agora? Sou só afinal mais um entre tantos outros. Talvez me deva embebedar, torrar o resto do dinheiro, correr sofregamen­te pelos caminhos da luxúria, exaurir-me desaustina­damente no apelo dos sentidos. Talvez seja só isso a vida”, pensou. “Mas porque heide correr à procura do que não desejava e o seu impulso vão?” Media a sua vida decorrida e o peso da sua falta.

Não estaria afinal já morto fazia algum tempo, no desencanto das agruras da vida e da solidão, do desemprego forçado, dos últimos desejos que não entrevia, dos cacarecos sem valor para testamento? “Agarre-se à oração”, ainda ouviu a mulher da limpeza sussurrarl­he, mas há muito que descrera. Nada, nem ninguém nos guarda ou vigia por aí que não a nossa crença ilusória.

“Onde esteve Ele até agora e onde está?” Inspirou profundame­nte e uma estranha calma invadiu-o, paralisado numa clareza desprovida de comoção. “Resto eu em frente da minha morte”. Vestiuse e foi embora, como quem fugisse de alvoroçar o pensamento. Deambulou pela marginal, alheado, com a brisa a soprar-lhe no rosto encolhido. Mirava as montanhas, as plantas, a imensidão do azul, como se os visse pela primeira vez, numa percepção insólita de estar entrosado na maravilha do mundo natural. Tudo o mais parecia destoar, os prédios, as ruas, os carros e pressentia que de todo aquele fulgor de beleza, o homem é o elemento mais frágil. “O sol, o céu, o mar, vão continuar o seu fado eterno e eu serei só mais uma andorinha débil que se perderá no elenco, sem qualquer valor para o ciclo das coisas”, discorria. “Que vimos cá fazer afinal?” De repente um carro atropela um gato que se atravessa. Fita o pobre bicho e

Havia no seu olhar um qualquer brilho de felicidade. Tinha existido e amado e isso bastava-lhe.

friamente antevê o seu corpo inanimado, como o do bichano que morreu sem que a morte se lhe ocorresse ponderar. Um mero átomo do universo. “Só que eu sei que vou morrer, e a natureza segue alheia a essa noção atormentad­a. Chegou a tua hora, nada mais há para pensar”. Sentase resignado às razões insondávei­s da existência, enquanto contempla as ondas do mar, pachorrent­as e infinitas. E assim ficou, à laia de despedida, sorvendo o deslumbram­ento de pertencer àquele conjunto belo e perfeito, com os olhos cheios do encanto do mistério da vida. “Que mais posso querer? Talvez levar o brilho do meu olhar suspenso noutro olhar. Tudo o resto está visto, pensado, vivido ou não vivido, morto como um passado deve ser”. Tirou do bolso a foto que guardava da mulher que amara e reviveu momentos de ternura. “Só isto deu sentido à minha vida e é quanto posso levar”. Semicerrou os olhos numa calma reflectida, na certeza de quem vai trocar as voltas à morte maldita. Havia no seu olhar um qualquer brilho de felicidade. Tinha existido e amado e isso bastava-lhe. Um transeunte deu o alerta de que junto ao cais estava um corpo inerte a boiar.

Hugo Amaro escreve ao sábado, de 4 em 4 semanas

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