Jornal Madeira

Corte de canivete

- DO FIM AO INFINITO Duarte Caires duartevelo­sacaires@gmail.com

Quando eu era miúdo, andava sempre com um canivete no bolso. Tive vários e foramme todos oferecidos pelo meu avô materno e pelo meu pai, homens que acreditava­m piamente no poder das ferramenta­s, mas nenhum chegou aos dias de hoje. Não sei que fim levaram, pois nunca fui de guardar ou colecionar coisas e acabo sempre por lhes perder o rasto, mas lembro-me muito bem da importânci­a que tiveram na construção do meu mundo e do meu imaginário.

A minha vida teria sido diferente sem aqueles canivetes, cujo cabo era quase sempre cor de pérola ou vermelho-escuro e a lâmina curta. Eu invejava os do meu avô e também os do meu pai, enormes e robustos, mas nunca me deram um assim. Afinal, eu era criança e aquilo tinha um poder de corte incrível, capaz de ferir com gravidade ou até decepar um dedo. Ainda assim, ninguém fazia ondas por eu andar armado com um de lâmina pequena. Era normal. Naquele tempo, todos os putos traziam uma navalha na algibeira.

O canivete servia para muitos fins, como descascar fruta e limpar as unhas, esgaravata­r na terra e desatarrax­ar parafusos, fazer joeiras e carros de cana, arcos e flechas, fisgas e tantas outras coisas úteis para quem anda a explorar a origem do cosmos, ou simplesmen­te para passar o tempo a afiar pauzinhos, tarefa inócua, mas de elevada nobreza, porque é uma das melhores formas de libertar o pensamento e estimular a imaginação.

Nunca mais peguei numa navalha para fazer isso. Agora, é tudo muito perigoso, já se sabe, seja agir ou pensar na vida de punhal afiado ou cortar o mundo no fio da imaginação. Tudo nos surge carregado de abismos, pelo que tanto escorregam­os na imbecilida­de como caímos na prepotênci­a, ou na incerteza como na alucinação, ou na esperança como no medo, ou em tudo e mais alguma coisa ao mesmo tempo como em nada. É uma confusão, um desnorte, uma imensa solidão.

A ideia do canivete traz-me de volta o tempo da infância, quando eu ficava sentado num canto a desfolhar um pau qualquer, tentando ordenar a minha breve existência de meia dúzia de anos com as poucas palavras que conhecia, à medida que a tarde chegava ao fim e a noite iniciava o seu lento percurso rumo ao novo dia.

Uma parte do homem que aqui está – este que vos escreve – nasceu ali, de canivete na mão esquerda e um bocado de madeira na direita, lascas a voar e a cair entre o crepúsculo e as pernas, a pensar assim: Quem sou eu? Era tão novo, meu Deus, e já pensava assim: O que faço aqui? Que lugar é este? E depois perdia-me a inventar universos paralelos, aonde chegava sempre como viajante solitário vindo do infinito e logo me armava em herói intrépido e imortal, embora não soubesse ao certo o que era isso. Parecia-me bem que assim fosse, mas na verdade desconheci­a porquê.

Eu gostava muito de pensar que a minha vida era uma folha de árvore a cair. Nunca quis ser a folhagem viçosa e luzidia presa nos ramos, mas sim aquela que se desprende e viaja ao sabor do vento, ao sabor do seu peso e da sua leveza, ao sabor da lei da gravidade e da morte certa, sem rota traçada, inevitavel­mente rumo ao chão, o destino final, e quando essa folha caía na ribeira ou na levada e seguia viagem na corrente, a brilhar cada vez mais distante, até se perder de vista, até não ser mais folha, mas apenas água que vai, eu sonhava com toda a força que queria ser assim, tal e qual, para sempre.

Mas tudo isto era apenas pensamento e ilusão na cabeça de um miúdo, enquanto afiava um pauzinho com o canivete. Nada mais.

Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas

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