Jornal Madeira

O primeiro dia de professora

- Sílvia Mata silviamari­amata@gmail.com

Minha mãe acaba de sofrer um AVC. A casa está de pernas para o ar! Ninguém sabe substituil­a. Mas tenho boa vontade em aprender! Inscrevi-me na Secretaria Regional da Educação para ser professora. Um dia tinha de ser! Quero ser profission­al do ensino a valer!

Acabo de receber uma carta da SRE para me apresentar na escola da Levada! Há uma vaga para mim! Estou nervosa! Sinto-me uma criança ainda e já tenho uma grande responsabi­lidade de adulta! Meu pai dá-me força! A tia Elvira, também! Vai!

É o dia 19 de novembro de 1987. Por breves segundos, recordo que em 1977, dez anos antes, precisamen­te nesse dia, caiu o avião no aeroporto da Madeira. Morreram 131 pessoas, incluindo o Mestre Justino Henriques, corredor automobili­sta, que trabalhava na Ford com meu pai. Nada de pensar negativame­nte. É apenas uma data. Acabei de fazer 21 anos. Tenho medo, mas vou! Preparo tudo antes de ir! Deixo minha mãe acomodada o melhor que sei, e o que sei é muito pouco.

Chego à sala de professore­s! Ser estranho que sou! Amedrontad­a! Bicho do mato! Não conheço ninguém. Estou feliz, mas muito insegura. Vou dar conta? As cotas da escola, as que fazem já parte da mobília, não me ligam! Para quê ligar à pequena? Ponho-me a ver, sem ler, o placar. Finjo!

Até aqui tudo sofrível.

Dá o toque de entrada. Tenho agora uma turma de 11º ano. Alunos com a minha idade quase! E penso como é possível alguém atribuir a uma pequena como eu uma turma daquelas. Até parece engano! Em frente. Subo a escada. Pelos corredores é um alvoroço. Empurrões de um lado e do outro. Eu a meio daquilo. A contínua só vai abrir a porta da sala quando a professora chegar! O molho de chaves na mão a tilintar. Eles esperam pela nova professora. Sou eu! Cheguei. Quero mostrar confiança em mim, competênci­a e autoridade! Quero mostrar que tenho os pés bem assentes no chão. E que sei para o que estou! Difícil. A minha carinha de inexperien­te não engana um cordeirinh­o! Eles sabem! Barbudos! 1.80m de altura a olhar para mim de cima para baixo! Quero fugir! Tirem-me daqui! Elas, mulheraças e mulheronas com mais corpo do que eu! Arrojadas! Os seios quase à mostra! Professora­s, elas! Eu, a ingénua com muito para aprender! A contínua olha-me atónita! De certeza que pensou: “Vais dar conta disto? Desconfio!” E tinha razão!

Entrei. Tenho de me dirigir à secretária do professor. Um nó na garganta! Quem me dera estar do outro lado de olhos virados para o quadro a apreciar aquele espetáculo. Mas não. Eu sou a atriz principal ali e estou feita ao bife com aquele público! É a apresentaç­ão mútua. Levo tudo bem preparado. Vai correr bem! Cinquenta minutos de aula num instante passam. Para mim foi um ano! Difícil. Complicado! Começo por escrever no quadro a data e o número da lição. E nessa ocasião, acontece o que estava fora de todas as minhas previsões. Nem nos confins da terra nem no outro lado do mundo nem no espaço eu desencanta­ria aquela hipótese! E não estava preparada para aquilo!

Oiço miados! Eles imitam gatos. Miam! Como é possível uma coisa destas se ainda ontem eu tinha quase a idade deles e nunca vi coisa assim? E agora miam eles e miam elas. “Esta sala é só gatos!” - disse um. E eu não consegui controlar aquilo. Selva autêntica! Turma de loucos! Não vejo a hora de sair daqui! Por mais que eu fale, não me ligam. Miam e miam. E mesmo quando deu o toque de saída, abandonara­m a sala a miar.

Cheguei a casa de rastos! Desanimada, querendo desistir de tudo! Sentei-me, deitei a cabeça em cima da mesa e explodi em lágrimas tudo o que tinha para explodir.

Só então, percebi tudo. O padrão abstrato e grado da minha saia de lã ao viés, em tons de castanho e cor de mel, formava uns novelos de lã que lembravam gatos emaranhado­s uns nos outros. Apesar de não serem evidentes os desenhos, as orelhas dos gatos eram bem visíveis, os bigodes e os rabos que se alongavam!

Por isso eles miaram. Por causa da minha saia de gatos! A juventude tem cada uma que não lembra a ninguém!

Sílvia Mata escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas

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