Jornal Madeira

Da profunda alegria do medo

- ÀS VEZES VOO. ÀS VEZES CAIO Susana de Figueiredo Jornalista

OOutono tem para a vida uma margem muito alta que nos corrige antes do medo, que nos corrige, uma casa que não pode ruir sem a ausência da mão, esse corpo que não nos larga sem que nos atinja a primeira pedra.

Os meus pés não sentem já o frio do Verão, nem a água do corpo por cumprir, como se os pássaros fossem homens e viessem de longe e nunca chegassem.

Há um tempo que vem corrigir-nos o desejo e secar as nossas mãos tão gastas de procurar. Porém, o tempo não chega onde não vemos, onde não vamos. Então, deito-me sobre o teu peito como se esse calor viesse ainda do princípio, ou de uma rosa muito viva no meio do escuro onde me perdera; eis a sua escarpa inesperada visitando-me como um sinal. São afinal as árvores que caem das folhas, depois de adormecida­s por mãos que desconheci­am. Depois.

Eu já nem sei de outras mãos, de outro calor de Outono onde fui morrer. Ter. É na claridade que toda a luz se apaga, quando os dedos de uma mão não servem já para indagar uma noite qualquer, apenas uma única noite voltada para o primeiro dia. Se eu morrer, promete que virás devolver-me o clarão do escuro. Bem sabes como temo que os meus olhos ceguem ao sol. Não sabes?

Hei-de entrar pela berma do corpo, pela mão mais aflita sobre a minha cabeça. Não saberei, talvez, procurar a noite ou o lado contrário do teu rosto que me visita. O tempo terminará ao começo de cada corpo, apagando com ternura a flor que se despede da água, mas eu hei-de enganar-me e inclinar-me para os teus olhos, como se sobrevives­se e pudesse. E poderei ser árvore caída da folha, ferida funda onde o vento não toca. Caem as árvores das folhas, ainda que o Outono não limpe outras estações.

Se eu viver, não limpes o soro do meu corpo, pois não há-de ser inteira a desatenção de um corpo sobre o outro, ou de uma árvore sobre a guerra, calor inoxidável que uma boca esmaga antes de esquecer, antes da velocidade que trava todas as luzes para dentro.

O Outono tem para a vida uma margem muito alta, o seu vente desabitado pronto para as flores que não hão-de cair. E virá, então, a profunda alegria do medo, o silêncio inaugural de um país que não veio ao mundo para nascer.

Se eu morrer, promete que virás devolver-me o clarão do escuro. Bem sabes como temo que os meus olhos ceguem ao sol. Não sabes?

Susana de Figueiredo escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas

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