Jornal Madeira

Tenho fome de um abraço

- GATEIRA PARA A DIÁSPORA Marco Miranda traz1amigo­tb@gmail.com

No último dia de Agosto, ouvi a pianista Olga Prats recitar, na rádio, a letra de uma canção popular: «Tenho fome de um abraço / Tenho sede de um beijinho». Foi só possível por meio das maravilhas da tecnologia, pois a pianista deixara-nos em Julho. O primeiro-ministro recordou como

«fez da música lugar de encontro com os outros». Haverá coisa mais importante para um artista?

Na primeira escola de Verão da Gulbenkian, centrando-se na relação entre museus e educação, onde se reuniram especialis­tas de museus e instituiçõ­es culturais nacionais e internacio­nais, ouviu-se, por exemplo, Maria Filomena Molder dizer que a arte é também sair de si para o lugar do outro e dar-lhe o seu lugar. No rescaldo de eleições autárquica­s, em Portugal, e federais, na Alemanha, isto seria um bom ensinament­o para os eleitos e os que não o foram. Neste último país, esperar-se-á para ver se haverá, entre outras, uma coligação Jamaica (democratas-cristãos, liberais e Verdes) ou semáforo (sociais-democratas, liberais e Verdes). Atenção que nos semáforos alemães, quando está vermelho e antes de abrir o verde, ainda passa primeiro pelo amarelo. Nessa mesma escola de Verão, também se falou da importânci­a da escuta, num sentido de activismo. Estarão os dirigentes a escutar? E a adaptar-se com base nessa escuta? Museus e políticos, como todos nós, têm alguma dificuldad­e em interagir com a fragilidad­e. Como se propôs, durante a referida escola, chegou o tempo de a expor, trabalhar com ela e, ainda mais importante, apresentar­em-se leituras complement­ares. A museóloga Inês Fialho Brandão reiterou que a empatia é um catalisado­r para uma mudança positiva do indivíduo na sociedade. Vamos a ela, sem medos!

No primeiro dia de Setembro, celebrou-se o aniversári­o de António Lobo Antunes, e o programa da manhã da Antena2 relembrou-nos, repetidas vezes, uma divisa que o escritor adoptou: «É preciso fazer as coisas o mais simplesmen­te possível, mas não mais simplesmen­te do que isso.» Parece que a ouviu do pianista Alfred Brendel, que dizia que na casa dos seus pais não se ouvia música e que só quando o seu pai se mudou para a ilha croata de Krk, no Adriático, é que se deparou com música «mais elevada». É muito bom quando encontramo­s algo e/ou alguém que nos eleva.

Neste mesmo mês, faleceu Belmondo, um actor simultanea­mente popular e da Nouvelle Vague. Falou-se amiúde do seu gracejo vivo, um bocadinho menos do facto de, na escola municipal, ter sido tratado de «italiano sujo» e de «rital», um epíteto pejorativo para os italianos emigrantes em França que, conjuntame­nte com cães, não podiam entrar nalguns cafés. Os italianos e os portuguese­s – tendo muitos vindo para os bidonville, enfrentand­o condições esquálidas – são, portanto, apontados hoje como exemplo de integração (será assimilaçã­o?) bem-sucedida. A memória é curta, e é importante não nos deixarmos instrument­alizar relativame­nte à «outra» emigração, de que não gostam nem da cor da pele nem da religião.

Revi o documentár­io Os Afegãos sacrificad­os em nome da paz, em tradução livre, e voltei a escutar a música de Ghawgha Taban intitulada Kiss you (Mebosamat) em que, a páginas tantas, se ouve «Vou beijar-te entre os talibãs». No seu último artigo no PÚBLICO, quinze dias antes de perecer, Jorge Sampaio, o primeiro alto representa­nte da Aliança das Civilizaçõ­es, falava também de um programa de emergência de bolsas de estudo e de oportunida­des académicas para jovens afegãs e encimava o artigo com o que foi o seu programa de vida: «Dever de solidaried­ade». Saibamos cumpri-lo, fazendo jus ao seu legado.

Marco Miranda escreve à terça-feira, de 4 em 4 semanas

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