Jornal Madeira

O mecanismo da memória

- DE LETRA E CAL Raquel Gonçalves raquelkiva@gmail.com

Oque é capaz de acionar a memória? Hoje diria que foi o mar. Amanhã não sei ao certo o que será. Nunca se sabe até que acontece. Na maioria das vezes é apenas uma dessas banalidade­s sem qualquer sentido, como o mar de hoje, por exemplo.

Porque haveria o mar de me trazer uma memória precisa de um dia já longe? Porque haveria o mar de me trazer de volta um momento entre tantos, um momento já do fim, um momento tão fugaz quanto esquecido por detrás de tudo o que foi mais significat­ivo?

E, no entanto, o mar arrastou esse momento para o centro da memória, dando-lhe a consistênc­ia de uma coisa que se deve recordar.

O mar desta memória era outro. A norte, bravio, frio, com muito vento e um sol que ainda não aquecia. Usava o fato de banho vermelho que comprei contigo. O fato de banho que havia de ficar esquecido para sempre num quarto de hotel.

Vimos a praia do outro lado do paredão. É uma praia de surfistas, explicaste. E eu a ouvir-te na imensidão da areia. A nova geografia contigo era assim: imensa e sem fim. Um outro lugar que se fazia casa por ti e por mais nada. Ali o familiar vinha de um lugar situado por dentro e não de um mapa exterior.

Mas não foi isso que a memória do mar trouxe para o dia de agora. Foi ainda outra coisa. Chegados à praia, eu quis tentar o mar norte e bravio. Acho que sorriste do entusiasmo infantil pela água. Disseste para ir, que esperavas na sombra.

Estavas cansado. Era aquele cansaço que tinha surgido tão repentino algures dentro de ti e que tentávamos afastar com a ilusão da felicidade. Mesmo sentindo e sabendo algures no meio do corpo que um naufrágio se aproximava. Mais uma vez, os sinais da tempestade vinham de dentro. De tão de dentro que tentávamos tapar todos os orifícios pode onde ele pudesse sair e tomar conta dos dias e das noites.

E eu fiz-me ao mar com essa ilusão de que estarias sempre à espera.

De repente, e esta é a memória que o mar trouxe até hoje, dentro do mar olhei para trás e já não estavas. Corri em desespero para fora da água. Procurei-te com o olhar estendido por toda a costa. Por momentos tinhas desapareci­do e o coração desafinava ainda mais do que o vento. E um frio repentino tomou conta do corpo todo.

Estavas cansado. Era aquele cansaço que tinha surgido tão repentino algures dentro de ti e que tentávamos afastar com a ilusão da felicidade.

Não sei que tempo levou o sobressalt­o da tua ausência. Mas foi o suficiente para o medo. Apareceste depois, mesmo ali, como se não tivesses deixado o lugar onde te deixei.

Um mês depois desapareci­as para sempre. Não havia mar. Havia uma chuva e uma paisagem escura. Havia o meu desespero dentro do ruído imenso do hospital. E depois o silêncio mais fundo de todos. Sei hoje que o mar já sabia do fim. Nós não.

Raquel Gonçalves escreve à segunda-feira, de 4 em 4 semanas

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