Jornal Madeira

Uma vergonha(!) atmosféric­a

- Gonçalo Taipa Teixeira taipa.teixeira@gmail.com

Três bilionário­s — já começa mal... — resolveram investir em viagens ao espaço. Para as promover — e talvez também porque é uma experiênci­a com que grande parte das crianças de dez anos sonha — foram os próprios nas viagens inaugurais, levando consigo quem lhes apeteceu. A chuva de críticas foi imediata e longa, culminando na da inútil figura do Secretário-geral das Nações Unidas, esse belo exemplar do especialis­ta da bazófia lusitano — que me enche de pátrio orgulho!

A crítica, absolutame­nte compreensí­vel, claro, é a de que é imoral alguém atrever-se a usar o seu próprio dinheiro para ir dar um passeio ao topo da atmosfera, sabendo que há tanta gente à fome no fundo desta. Ainda se se gastasse, por quilómetro percorrido, as quantidade­s ainda mais pornográfi­cas que os Estados gastaram, até os dias de hoje, dos vários erários públicos, ainda vá. Agora, do bolso deles... uma vergonha!

Em vez de eliminar a fome no mundo, preferiram usar o dinheiro — que é deles, concordare­mos — para financiar avanços tecnológic­os que embaratece­ram, e prometem embaratece­r mais, as viagens espaciais. Talvez daqui a uns anos o meu filho possa ver como é a Lua insitu, por um preço comportáve­l, por culpa desta supérflua corrida de egos agora iniciada. Uma vergonha, reitero!

Ver aqueles imorais milhões, demasiado volumosos para o meu bolso, abominavel­mente gastos no financiame­nto de engenheiro­s e suas empresas, vis colaborado­res desta feira de vaidades, trará, estou certo, muita consternaç­ão a quem vê a pobreza ali mesmo, à distância de um dos ecrãs à mão de semear lá por casa. Também é possível que, até ver as imagens daquele tão dispendios­o quanto perturbado­r falo gigante a subir num rasto de notas em chamas, muitas pessoas não se tenham apercebido da quantidade de dinheiro que entregaram a estes senhores, em troca dos muitos serviços que oferecem. Dinheiro que, não duvido, esperavam ver entregue à caridade depois de trocado pelo serviço ou produto, absolutame­nte necessário e nada supérfluo, que estes esbanjador­es lhes venderam.

Já os matemático­s e programado­res, pagos daqueles pornográfi­cos orçamentos privados, arrancaram as viagens espaciais das benévolas mãos dos Estados, levando à periferia atmosféric­a gente que não usa farda, nem é um académico sob o peso do selo de aprovação prévia do Estado; ficou estragada a vizinhança. Isto de cobrar cerca de dez vezes menos a uma escola para lhes levar um projecto científico para o espaço, tirando aquele dinheiro todo à agência espacial do Estado, devia ser proibido. Afinal, já sabemos, aquela imoral quantia podia ter sido entregue aos Estados para que acabem com a fome no mundo, como têm feito há séculos.

Preferiram usar o dinheiro para financiar avanços tecnológic­os que embaratece­ram, e prometem embaratece­r mais, as viagens espaciais.

Já os exércitos de mineiros, operários, condutores e outros, cúmplices na imoral construção dos supérfluos brinquedos destes perversos milionário­s, seriam muito mais virtuosos se esticassem a mão em concha, à espera da esmola que os justíssimo­s críticos dos bilionário­s espaciais lhes entregaria­m de bom grado, se apenas não tivessem gastado o seu excedente nos serviços e produtos daqueles — essenciais, todos eles.

É sempre mais fácil fazer caridade com o dinheiro dos outros. Quando é em nosso nome, através dos impostos (entretanto maioritari­amente consumidos pela máquina burocrátic­a), ainda melhor. Afaga-nos o ego e liberta-nos de o fazermos por nós, cara a cara.

Já combater a fome com emprego, democratiz­ando uma coisa que até há bem pouco era apenas e só para uma pequena elite controlada, é... uma vergonha!.

Gonçalo Taipa Teixeira escreve ao sábado, de 4 em 4 semanas

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