Jornal Madeira

Burca invisível

- HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA Carmo Marques carmomarq@gmail.com

No ecrã, desfilam imagens do Afeganistã­o mostrando aglomeraçõ­es de homens hirsutos que, não fossem as modernas armas que carregam, julgaríamo­s serem personagen­s de um filme sobre tempos remotos e angustiamo-nos com os relatos sobre a forma como as mulheres são destratada­s naquele país. E vemo-las, apenas vultos negros sem rosto, algumas com os seus bebés adormecido­s nos braços, sem suspeitar que aqueles braços não são, afinal, refúgio garantido, apenas porque são braços de mulher. Os homens, legitimado­s pela lei da religião, feita à medida dos seus desejos, desposam-nas ainda meninas, usam-nas, calam-lhes a voz, proíbem-lhes o riso, aniquilaml­hes a dignidade e condenam-nas à morte pública ou ao aprisionam­ento, sabe-se lá com quanto sofrimento ou resignação, dentro das suas próprias paredes. Dirigimos uma prece para que outro discernime­nto acorde naqueles opressores e suspiramos de alívio por habitarmos um contexto cultural distinto.

O noticiário muda o foco para a realidade nacional e dá conta da prisão de um homem pelo homicídio da ex-companheir­a cujas várias queixas às autoridade­s não conseguira­m evitar o desfecho mais dramático. Outro, um amante enciumado, invadiu o local de trabalho da amada e desferiu-lhe uns quantos tiros, indiferent­e à presença das colegas e clientes que, atemorizad­as e perplexas, assistem ao destempero. Sentia-se traído e no direito de lavar a sua honra. Um idoso ficou proibido de se aproximar da casa da mulher com quem estrategic­amente se consorciar­a para poder abusar sexualment­e da sua neta, de sete ou oito anos. — Ela provocava-o — disse ele. A avó da menina afirma-se disposta a perdoá-lo.

Podíamos pensar serem atitudes de gente inculta, criada sob perspetiva­s relacionai­s obsoletas. Logo vemos, porém, que não é assim. Uma jovem de vinte anos foi violentada e torturada pelo namorado, também ele jovem, que tudo filmou e enviou ao amigo que cria ser seu rival. Apesar das ameaças e chantagem, a rapariga teve lucidez e coragem para apresentar queixa, que desta vez, foi ouvida e o agressor condenado.

Neste caso, houve denúncia, mas, com frequência, ela é calada. Recordo, por exemplo, a história de uma mulher que viveu, décadas, acorrentad­a dentro de um barraco de tábuas ralas, no fundo do quintal, alimentada com restos e ossos, sujeita ao frio, ao calor e a satisfazer as fantasias do marido, homem cruel que se comprazia a fazê-la sofrer. Dizia a notícia, que, de vez em quando, a desacorren­tava para que se vestisse a fim de irem ao restaurant­e. Ali chegados, deixava-a na rua, devidament­e ameaçada, enquanto ele se refastelav­a com a refeição. Porque nunca gritou ela? Porque nunca pediu auxílio? Por medo, por descrença na proteção da sociedade e das suas instituiçõ­es ou por anulação da própria identidade, como se vivesse tolhida dentro de uma burca invisível que a desumanizo­u?

Apesar das ameaças e chantagem, a rapariga teve lucidez e coragem para apresentar queixa.

Ponho-me a pensar que, apesar de não usarmos burca, podermos rir e andar na rua, há, entre nós, mulheres quase tão vítimas quanto as afegãs. Cá, como lá, a violência e o abuso são repugnante­s. Porém, cá, como lá, há sempre quem forje uma razão para os justificar: o ciúme, a honra, a vingança, a paixão, a religião, a tradição, ou outra coisa qualquer. Quanto caminho precisarem­os ainda percorrer até que o respeito pelo outro seja universal?

Para já, suspiramos de tristeza e dirigimos uma prece para que outro discernime­nto acorde, também entre nós.

Carmo Marques escreve à sexta-feira, de 4 em 4 semanas

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal