Jornal Madeira

Os tontos ao volante

- Hugo Amaro

Diz-se que para conhecer a verdadeira natureza de alguém é dar-lhe poder. Para o que interessa aqui diria que se se quiser avaliar o seu carácter nada melhor que observar o seu comportame­nto ao volante de um automóvel, o que também implica algum empoderame­nto. Na verdade, nada é tão revelador do âmago das pessoas e do nível civilizaci­onal de uma sociedade como as atitudes no trânsito. A experiênci­a diária revela que o mais cordato dos cidadãos parece sofrer uma transforma­ção abrupta nos contornos da sua personalid­ade assim que liga a ignição, transforma­ndo-se num libertino e perigoso selvagem. Conduz-se empiricame­nte e por instinto, esquecendo que existem normas que regulam o exercício desta actividade arriscada, as quais, quanto parece, só são relevantes nos dias dos exames para ganhar a licença ou na eventualid­ade de um acidente. Incontávei­s exemplos se poderiam dar da condução temerária, negligente e incumprido­ra. Ele é o carro que não tem pisca-pisca ou tem-no, não como sinal indicador, mas em cima da manobra; o embaraço desconhece­dor na entrada e circulação na moda das rotundas, algumas de recorte caricato, criadas como circuitos para maior fluidez do trânsito e que redundam no seu entorpecim­ento, ainda que estranhame­nte não haja movimento; a condução destemida e as entradas intempesti­vas nas vias rápidas; o estacionam­ento abusivo e em segunda fila; o desrespeit­o pelas passadeira­s; o circular apressado de olho no semáforo reservado aos peões; o inadiável telemóvel ao ouvido como se se tratassem de agentes de socorro de prevenção; a buzina como protesto ou provocação, etc.

E é neste universo que se libertam, no tal fulano aparenteme­nte cordato, as verdadeira­s pulsões da sua personalid­ade reprimida, o seu pendor emotivo e selvagem, dando lugar às tiradas de calão; ao insulto à mãe ou à mulher; à ameaça verbal e até à agressão física; à amolgadela e até ao atropelame­nto com fuga, etc. Sem esquecer a desfaçatez do cagão que presume que a cilindrada ou a notoriedad­e lhe granjeia inimputabi­lidade ou precedênci­a; o abusador rasca que se acha um ás do volante na má formação que traz de casa; a impaciênci­a e a intolerânc­ia que nada mais é, por vezes, que um rancor invejoso pelo glamour do bólide alheio; a sensação audaciosa de liberdade, como se a condução fosse um acto solitário indiferent­e aos demais intervenie­ntes; o orgulho na impunidade da transgress­ão não topada pelas autoridade­s, encaradas não como um elemento de segurança e apoio, mas como agente castigador de que se tem medo, potenciado por algum abuso de poder arrogante. E de permeio a esta atitude irresponsá­vel e atrevida, persistem os tontos ao volante, que ainda são a maioria, felizmente. Os que não esqueceram as regras do código da estrada e as procuram cumprir, a quem não falta um gesto de cortesia e complacênc­ia. Os que menos vigiam os passos da fiscalizaç­ão e controle e a quem falta a matreirice dos campeões da estrada. Os que, por ironia do destino, são as vítimas mais à mão da punição por um pequeno esquecimen­to ou deslize.

Fruto destas idiossincr­asias da personalid­ade na estrada morreram em Portugal, em 2020, entre culpados e inocentes, mais de 300 pessoas, incluindo 8 na Madeira. O que constitui um sinal preocupant­e de uma faceta algo embrutecid­a do nosso grau civilizaci­onal, longe da desejada e cumpridora convivênci­a.

Na inconsequê­ncia das campanhas de prevenção, dos bancos da escola e do chá da família, parece que o problema só terá solução quando a engenharia mecânica construir modelos que se conduzam a si próprios, porque a máquina ditosament­e não tem personalid­ade, nem auto-estima, nem emoções.

Hugo Amaro escreve ao sábado, de 4 em 4 semanas

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