Jornal Madeira

O telheiro

- Sílvia Mata silviamari­amata@gmail.com

Lembro-me da construção do nosso telheiro. Foi há perto de cinquenta anos. Meu pai estava trompicado com aquilo, porque não estava a dar conta. Foi quando passaram na vereda os nossos vizinhos, homens amigos, e vieram ajudar. Num instante, galgaram o telheiro.

O telheiro passou a ser propriedad­e exclusiva de meu pai! Havia sempre uma réstia de cebolas pendurada à entrada da porta! “Vai buscar uma cebola ao telheiro”, dizia minha mãe às vezes! Havia também, pendurado por uma verga torcida junto ao teto por causa dos gatos, um gaiado seco que a gente se empoleirav­a nas traves e beliscava. As botas de meu pai ir à fazenda, também à entrada. À esquerda, a tarimba, onde meu pai estendia as semilhas abafadas com sacas para não apanharem luz! Os apetrechos do lagar do vinho a um canto para lá, umas cangalhas para pôr os barris, as foices, as ameixas para largar dentro dos barris, as mangueiras de puxar o vinho, o fole do enxofre da vinha, aquele recipiente que se punha às costas para deitar remédio nas semilhas que meu pai chamava a máquina de sulfatar, a lanterna para aluminar à noite nos dias de rega quando a água estava de giro, um moinho de carne, um ralador, as nossas malas e bolsas da viagem da América, que agora só serviam para o arraial da Ponta da Delgada, as enxadas a um canto, a caixa da ferramenta com os pregos ferrugento­s e o martelo, o casaco grosso cor de mel e o fato impermeáve­l de meu pai andar à chuva pendurado num prego! Os cestos de vimes de acartar as colheitas da fazenda, o balde e as vasilhas do vinho, as vasilhas do leite que vieram da casa do tio João, e mais todas as coisas que meu pai guardava, porque um dia podiam ser precisas! Nunca se sabe! E essas coisas eram atilhos, baldes, ferrinhos, sacas, plásticos e tanta coisa a dobrar que a gente deixou de poder se mexer dentro do telheiro. Eram os ferrumelos de meu pai!

Minha mãe dizia: “Teu pai tem aquele telheiro numa xungaria, ninguém entra acolá”! E era verdade! Chegava-se à porta e só se podia mexer os olhos, mais nada! Mas era o lugar de meu pai. Era lá que ele assobiava feliz deste mundo a esbulhar o feijão, em dias de sol ou de chuva! Era lá que ele arrumava ou desarrumav­a tudo! Era lá que ele fazia as suas colheres de pau de mexer o milho e as oferecia às sobrinhas, aos amigos e depois ria: “Eu ia fazer um santo, mas saiu uma colher de mexer! É para ti! Pega!”

É preciso alguma coisa que já não existe? “Vai procurar nos ferrumelos de teu pai!”, dizia minha mãe.

E meu pai tanto ouviu maldizeres destes do seu lugar predileto, que um dia batizou o seu telheiro de “Maria Cristina”! Quem era Maria Cristina? E meu pai respondia: “Era o barco que ia à cunha para o Porto Santo, até gado levava!” E o “Maria Cristina” teve direito ao seu nome escrito a tinta na porta de madeira com o cadeado dourado.

O melhor de tudo era no dia de

São Martinho! Meu pai puxava um fio de luz da nossa cozinha e tudo se iluminava por ali acima, debaixo do corredor da vinha e vinham homens provar o vinho, que estava sempre clarinho, uma boa cor, um bom cheiro e comiam e bebiam e falavam e riam e cantavam! E as vozes deles eram diferentes, porque a luz elétrica e a lanterna acesa pendurada no corredor davam-lhes um ar de deuses, enormes que ficavam nas sombras que escorriam pelas paredes, pelo chão e pelos bardos ao redor!

Minha mãe, boa pessoa, mas queria que aquilo acabasse, porque tinha pressa para lavar os copos e os pratos e arrumar as coisas e pôr a vida no seu devido lugar! Eu estranhava aquilo e questionav­a-me sobre o porquê daquele enfastiame­nto por uma felicidade tão pura e tão boa!

Talvez hoje, minha mãe pudesse olhar para trás, recordar, dar valor e sorrir com a lembrança destas inutilidad­es que dão cor à nossa vida!

Sílvia Mata escreve ao domingo, de 4 em 4 semanas

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