Jornal Madeira

A linguagem que fala das possibilid­ades do impossível

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Este ano, acompanhei parte do cortejo do 1.º de Maio em Estrasburg­o. Ao passar por uma paragem do metro de superfície, perto da Ópera e logo ao lado da casa onde viveu o autor do hino francês, podia ler-se «Quanto é que ganhas?». Aquele cortejo pretendia, entre outras coisas, que não nos resumíssem­os a essa questão. No final, as pessoas reuniram-se numa grande praça e havia uma bandeira arco-íris com os dizeres «Paz». Os trabalhado­res, que são gente, são pela paz!

A 6 de Maio, fui ver uma das últimas produções de Tiago Rodrigues, o conhecido encenador português e o próximo director do Festival de Avignon, em França, intitulada

Falava-se vários idiomas mas uma só linguagem, a da reverberaç­ão: o que acontece em nós quando nos falam das possibilid­ades do impossível. No palco, havia o essencial: actores que são gente, mãos que seguravam as cordas que seguravam a tenda, que era uma montanha, e que era uma travessa onde o possível (países que não estão em conflito) se cruzava com o impossível (países em conflito e/ou em extrema necessidad­e). Havia também a música de Gabriel Ferrandini, o baterista, que reverberav­a em nós por debaixo da tenda. Esta peça inspirou-se de relatos de trabalhado­res da ajuda humanitári­a da Cruz Vermelha e dos Médicos sem Fronteiras. É urgente mobilizar o que esta peça, e o impossível, fazem reverberar em nós.

A

na Alemanha, organizou dois dias depois um sarau cultural e convidou vários poetas. Alguma da poesia chegava directamen­te da guerra, da Ucrânia. As atrocidade­s não podem parar a poesia pois é imperioso responder ao questionam­ento de Adorno sobre se se deveria escrever poesia depois de Auschwitz que não só se pode como é imperioso fazê-lo. Seria uma dupla violência se não o fizéssemos. Havia também um poeta sírio – que vivia na guerra, ainda que na Europa –, um poeta moldavo – que só conseguia escrever sobre a guerra mesmo quando começava a escrever sobre outra coisa qualquer. Falava-se de poesia e, a dado momento, perguntou-se se o marido da poetisa, se os pais, se os animais domésticos, em suma, se a poesia-de-cada-dia-nos-dai-hoje estava a salvo? De repente, apareceu-nos Lyuba Yakimchuk. Disse-nos que a guerra mudou as palavras: luz já não era a luz, mas um alvo para os soldados russos, e que a literatura era sempre perdedora e a realidade ganhadora na guerra.

A 9 de Maio, vejo a caminhada do Presidente Putin em Moscovo por ocasião da celebração da vitória na «Grande Guerra Patriótica» (como é apelidada a II Guerra Mundial na Rússia), cujo pensamento – disseminad­o nessa região do mundo – de o povo russo ter sido o único a contribuir para a derrota do nazismo deve ser contrariad­o. O presidente, o ministro da Defesa e alguns antigos combatente­s têm cravos, vermelhos como os nossos, mas sem o mesmo olor. Algumas dessas flores foram depositada­s em monumentos em memória de grandes batalhas – e muitos mortos – nessa guerra, tendo algumas delas ocorrido na actual Ucrânia, locais que agora estão sob controlo russo ou resistem.

No impossível, falar-se-á a linguagem daqueles que embrenhado­s na guerra advertem para que não a deixemos entrar em nós. No (im)possível, espero que se fale a linguagem dos cidadãos, muitos deles jovens, que se reuniram para apresentar, no Dia da Europa, os resultados a que chegaram no âmbito da Conferênci­a sobre o Futuro da Europa, para que esta faça reverberar a paz em nós, caso contrário não haverá futuro.

Marco Miranda escreve à terça-feira, de 4 em 4 semanas

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