Jornal Madeira

O sonho do homem primordial

- Alves dos Santos alves.dos.santos.escritor@gmail.com

Foi à entrada da caverna que se ousou sonhar um sonho de um projeto de homem, mesmo que tal projeto fosse talvez imperfeito, mesmo que fosse certamente primitivo. E entre a curiosidad­e e o medo, e entre a aventura ou a monotonia, descobriu-se o que significav­a essa vontade de partir e o impacto que teria no que se deixaria para trás.

Ergueu-se então esse nosso antepassad­o, desafiando a gravidade e derrubando toda a descrença, motivado apenas por alcançar o que até ali sempre tinha sido tomado por impossível.

Foi talvez o germinar da semente da ambição que nos levaria um dia à nossa ruína. Mas como poderia ele o saber naquele momento?

O mundo era então tão imenso e ele tão ínfimo, incapaz de imaginar que o tal sonho que ousou começar a sonhar se expandiria até se tornar maior que o próprio mundo.

O desafio naquela altura era ainda, literalmen­te, dar um primeiro passo rumo ao horizonte que sempre tinha sido fascínio e desafio.

O limite tinha sido, até então, apenas o que o olhar alcançava mas, ao içar

-se daquele plano tão rente ao solo a que sempre se tinha habituado, foi surpreendi­do por uma nova realidade que fez desmoronar o seu antigo paradigma de realidade. E enquanto os restantes se mantinham inocenteme­nte ignorantes, ele sabia agora que havia mais do que aquilo que a vista anteriorme­nte alcançava.

Sim, o seu mundo tornara-se subitament­e maior. Com tudo o que isso acarretava de ambiguidad­e e curiosidad­e. Quem poderia dizer se a nova fronteira não seria ela também uma mera questão de perspetiva?

Ruíram inevitavel­mente todas as antigas certezas mas estava agora, ao menos, um pouco mais perto das estrelas.

Este era ainda o homem primitivo mas foi com ele que nasceu esta fome insaciável por cada vez mais que, para o bem ou para o mal, faz parte integral de quem nós agora somos.

Mesmo sem certezas, partiu num ato inevitável de coragem e rebeldia. E, ao abandonar desta forma a caverna, tornou-se o arquiteto primordial do nosso futuro.

Eis pois a génese de toda a liberdade, que se prolongou até ao soltar do próprio polegar e ao fim dos seus constrangi­mentos locomotore­s.

Tivemos primeiro de ser nómadas por entre todos os cantos do nosso mundo antes de podermos falar de um lar.

Descobrimo­s algures a morte como demonstraç­ão do que significav­a ter ganho consciênci­a sobre nós próprios e o que nos rodeava.

E apesar disso conseguimo­s encontrar inspiração para sermos evolução contínua mesmo com regressões pontuais.

Faltou-nos a memória mas nunca o coração para ultrapassa­r infindávei­s tribulaçõe­s.

Mas pedimos tanto da nossa humanidade por tempo demais, insistimos em ser ímpeto mesmo quando devíamos ser precaução.

Trocamos enfim a nossa mortal existência por uma quimera que nunca se chega a concretiza­r.

Todas as nossas escolhas foram caminhos que desaguam numa noite de onde não se enxerga mais amanhecer.

Fomos prodígio que gerou a sua própria perdição, fim que se esqueceu do seu princípio.

E já não há mais sequer caverna para aonde voltar.

O berço primordial perdeu-se, tal como se perdeu a memória daquele momento em que o homem ainda primitivo achou que podia ser mais do que aquilo que estava destinado a ser.

Se tudo o que foi por ele sonhado se concretizo­u, falta então apenas saber se o homem primordial terá sonhado com a extinção da sua própria descendênc­ia.

Alves dos Santos escreve à quinta-feira de 4 em 4 semanas

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