Jornal Madeira

Estou quase a perder a vista mar

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Acabo de ouvir uma rapariga dizer que se tivesse de viver aqui, na Madeira, cortava os pulsos e repetiu três vezes que cortava os pulsos. É uma miúda de 20 anos, não mais que isso, e fala com sotaque lisboeta, pelo que deve ser do continente, embora haja muita gente daqui que tem a mania de falar com a pronúncia de lá, não sei porquê, talvez por uma questão de estatuto, ou de vergonha, ou de mero cuidado com a dicção, para se fazer entender melhor, com mais clareza, tal como esta, a dizer que cortava os pulsos se tivesse de viver na ilha, ali sentada na esplanada, a falar com as amigas, diante da bela Praça do Município, num dia cheio de sol, um dia tão bom para se estar vivo e sentir a vida e ela cortava os pulsos, meu Deus, ela cortava os pulsos por isso.

Nunca o disse a ninguém, mas sempre me irritou profundame­nte este tipo de raciocínio e de atitude, ainda que eu próprio me tivesse afeiçoado a ambos durante uns tempos, quando era mais novo e imberbe – esta obstinação terrível em maldizer a terra onde nascemos ou onde estamos de passagem e não compreende­mos nada, como se o resto do mundo não fosse igualmente pequeno e tacanho, só porque há lugares onde se ganha mais e trabalha menos e a língua que se usa é estrangeir­a. Enerva-me a ideia de que a existência assenta apenas nestas premissas – ouro e labor no país do esplendor e o resto fora dali não vale nada, incluindo o amor, o pudor, o rigor. Que miséria!

Sim, houve uma época em que eu também cortava os pulsos se tivesse de viver aqui, no paraíso, e precisei de muitos anos para compreende­r a gritante falta de mundo que este desejo continha. Pensar assim só nos tolhe os horizontes e enche de preconceit­os e outras merdas ainda piores. Quem ama a vida, apaixona-se por todos os lugares que conhece, mesmo aqueles onde impera o horror. Quem ama a vida não corta os pulsos por nada em lado algum porque é capaz de encontrar sinais de magia em toda a parte e em todas as coisas, ainda que chore ou sofra muito por isso. De repente, ali está a flor.

Digo-vos: só comecei a viajar depois de ter aceitado que esta é a natureza das coisas e então, sim, enriqueci, enriqueci muito, mas sempre sem tostão no bolso.

Quem me ouve falar assim, pode pensar que eu sou pobre, vagabundo, aventureir­o. Nada disso. Sou um tipo normal, comum, tantas vezes medíocre. É verdade que nunca tive muito dinheiro e em certas ocasiões ele faltou-me mesmo, mas não passei fome, nem frio por isso. Por outro lado, não viajo assim tanto nem tão regularmen­te como parece.

Dei uma pequena e humilde volta pelo mundo, só isso. Vi coisas bonitas e coisas feias em vários países, acho que foram 25, alguns de passagem, em cinco continente­s. Conheci pessoas espetacula­res, outras esquisitas, algumas más, de múltiplas nacionalid­ades, mas não mantenho contacto com nenhuma. Mergulhei nos três grandes oceanos e também no mar Mediterrân­eo e vi o sol nascer e morrer nos dois hemisfério­s. Vivi uma longa e encantador­a temporada no interior de Moçambique e andei sozinho, de mochila às costas, por recantos do terceiro mundo.

Acreditei. Chorei. Desisti. Tornei a acreditar, a chorar, a desistir. Regressei a casa. Apaixonei-me. Casei-me depois dos 50 na Praia Formosa com a mulher que amo, ela descalça, eu de sandálias, e vivemos numa zona nobre da cidade. É verdade que agora sinto outra vez falta do mundo e da distância, porque já não saio daqui há mais de dois anos e até tenho pesadelos por causa disso, mas nunca, jamais, penso em cortar os pulsos.

Da varanda do apartament­o, porém, vejo com tristeza o cresciment­o abrupto de um edifício em frente. Em breve, vai tapar-nos a vista mar. É pouca, mas deliciosa. Ficaremos rodeados de cimento. Contudo, eu amo a vida e o edifício não vai matar este amor. Quando perder o mar, ficarei com o céu que lhe dá cor. Por outro lado, tenho já uma viagem marcada e paga para breve e para longe daqui…

Duarte Caires escreve à sexta-feira, todas as semanas

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