Jornal Madeira

Sexta-feira 13

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Opadre pediu rigor na procissão, que fizessem duas filas e caminhasse­m ordeiramen­te e com ritmo, mas as gentes deste tempo já não sabem andar devagar. Correm para todo o lado, apressadam­ente, mesmo quando não vão a lado nenhum, num desenfream­ento de tudo que tantas vezes é nada. Não tardou, portanto, a reinar a desordem. E não era só entre os mais pequenos que preferiam ir dois a dois, ou três a três, em amena cavaqueira pelas ruas da freguesia naquela sexta-feira 13. Até os crescidos perderam a capacidade das tarefas básicas e facilmente confundem andar com apressar.

O vento ia apagando as velas e eles próprios iam soprando para ver a chamada em dança ondulante na brisa da noite. Os pequenos deste tempo não sabem que antigament­e aquele era um momento solene e que ninguém se atrevia a desalinhar o passo e o ritmo da fé, sob pena de levar uma castanheta dos mais velhos. A avó Adelina tinha um beliscão tipo para estes dias, que deixava marcas no corpo e na alma amuada. “Olha o Jesus ou olha a Nossa Senhora” e nós olhávamos com os olhinhos cheios de lágrimas aprisionad­as e um soluço silencioso de quem pede piedade. Talvez os beliscões da avó tenham sido a o nosso primeiro contacto com a Fé, porque depois do primeiro pedíamos por tudo que não viesse um segundo e colocávamo­s todas as fichas na proteção divina, até nos esquecermo­s e voltarmos a prevaricar.

Já fora do adro, a procissão seguia com três miúdos vestidos de pastorinho­s à frente da santa e as velas a alumiar a noite escura convidavam à meditação, não fosse os risinhos da canalha, pouco habituada a estes rituais, que aos mais velhos parecem de outros tempos, mas que para os pequenos eram apenas uma sexta-feira exótica, em que passeavam noite fora pelas ruas com uma vela na mão.

O padre pediu rigor na procissão, que fizessem duas filas e caminhasse­m ordeiramen­te e com ritmo, mas as gentes deste tempo já não sabem andar devagar.

Soubessem eles que se a avó os visse nestes preparos em plena procissão da Nossa Senhora de Fátima era tudo corrido a beliscões e reprimenda­s igualmente dolorosas. Ri-me ao lembrar

-me desses momentos e bendisse pelos novos tempos, em que já não se leva a vela protegida por um papel vegetal, que, não poucas vezes, acabava em brasas no meio do chão. E parece que ouvi a avó Adelina a cantar Avé, avé, avé Maria ao ouvido e acho que também se riu. E isso foi o milagre que procurava naquele regresso ao que já não é, mas nunca deixa de ser.

Sandra Cardoso escreve ao domingo, de 2 em 2 semanas

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